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Ciranda Poética

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Este espaço se abre para trocas, descobertas e aprofundamentos desta arte que inspira e tanto colabora para o processo de individuação!

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EDUCAÇÃO SENTIMENTAL (Maria Teresa Horta) "Põe devagar os dedos devagar... e sobe devagar até ao cimo o suco lento que sentes escorregar é o suor das grutas o seu vinho Contorna o poço aí tens de parar descer, talvez tomar outro caminho... Mas põe os dedos e sobe devagar... Não tenhas medo daquilo que te ensino" Este é um poema da grande poetisa, escritora, ativista e jornalista Maria Teresa Horta, expressiva representante feminista portuguesa, falecida em fevereiro deste ano. Sua militância poética e literária trouxe expressão significativa para as questões de liberdade sexual, autonomia e direitos das mulheres. Maria Teresa resistiu à ditadura e sua obra é importante contribuição contra a opressão vivida por nós, mulheres, ao direito do nosso livre prazer e autonomia de nossos corpos, em todos os sentidos. Neste poema, acho importantíssimo o lugar de fala de uma mulher que tem consciência de seu corpo, seus desejos e prazeres: sabe onde quer ser tocada, como quer ser tocada, como este toque a afeta e como seu corpo corresponde a esta troca! Pode-se perceber a potência expressiva das palavras de um poema, bem como um corpo que ganha voz. Quantas mulheres ainda têm seus corpos silenciados pela violência patriarcal? Seja pela estrutura corporal, pela roupa que usa, pela maneira como se comunica ou como expressa suas escolhas e desejos, de alguma forma, a mulher ainda é dominada pelo machismo estrutural presente nas pessoas, independentemente de gênero. No poema, a valorização do próprio corpo e desejo, aliados à validação de sua expressão, trazem um resgate da mulher a Si, à sua intimidade, ao seu direito de existir. Apesar de significativas conquistas, ainda é difícil às mulheres, a regência dos próprios corpos, pois não fomos autorizadas a escutar nossas próprias músicas. Por mais absurdo que seja, ainda nos sentimos constrangidas, desautorizadas, envergonhadas, insuficientes etc., diante de nossos corpos e de nossa autonomia sexual. Infelizmente, a maioria das mulheres não percebe que este arranjo configura uma violência contra a própria natureza. O corpo é um instrumento expressivo da nossa alma. O que acontece quando ele é violentamente silenciado? E, provoco dizendo que esta violência, em grande parte das vezes, é sutil: vem disfarçada de atenção, proteção, cuidado e abuso da nossa vulnerabilidade. Por isto, o erotismo é tão moralmente julgado: pois o erótico traz movimento de comunhão entre o corpo e a alma e este encontro, quando bem estruturado, se torna arma potente contra a violência vivida. Também acho válido destacar que o poema não define binaridade, bem como não define se a troca é única, dupla ou múltipla: ele só expressa que há uma mulher ensinando alguém - e aqui cabe, por que não, a possibilidade dela estar se reconhecendo diante do próprio espelho - a maneira mais prazerosa de ser tocada! Como bem colocado por Maria Teresa no título do poema, o ser humano carece de educação sentimental. Acredito que um corpo descoberto a partir do sentimento, atravessa uma linha mais profunda na compreensão de si e de quem participa desta troca. E não romantizo a palavra sentimento: me refiro ao sentido puro da palavra que remete à 'percepção pelos sentidos'. Assim, considero a natureza erótica e sexual da pessoa, também, um caminho de individuação! Mas, numa sociedade misógina, onde a mulher é julgada e violentada, principalmente, em sua sexualidade, despir-se à intimidade, ainda é um ato de resistência e coragem! Até a próxima, Karina Lopes Cabral

POEMAS PRESOS (Viviane Mosé) A maioria das doenças que as pessoas têm são poemas presos Abscessos, tumores, nódulos, pedras… São palavras calcificadas, poemas sem vazão. Mesmo cravos pretos, espinhas, cabelo encravado, prisão de ventre… Poderiam um dia ter sido poema, mas não… Pessoas adoecem da razão, de gostar de palavra presa. Palavra boa é palavra líquida, escorrendo em estado de lágrima. Lágrima é dor derretida, dor endurecida é tumor. Lágrima é raiva derretida, raiva endurecida é tumor. Lágrima é alegria derretida, alegria endurecida é tumor. Lágrima é pessoa derretida, pessoa endurecida é tumor. Tempo endurecido é tumor, tempo derretido é poema. E você pode arrancar os poemas endurecidos do seu corpo Com buchas vegetais, óleos medicinais, com a ponta dos dedos, com as unhas. Você pode arrancar poema com alicate de cutícula, com pente, com uma agulha. Você pode arrancar poema com pomada de basilicão, com massagem, hidratação. Mas não use bisturi quase nunca, Em caso de poemas difíceis use a dança. A dança é uma forma de amolecer os poemas endurecidos do corpo. Uma forma de soltá-los das dobras, dos dedos dos pés, das unhas. São os poemas-corte, os poemas-peito, os poemas-olhos, Os poemas-sexo, os poemas-cílio… Atualmente, ando gostando dos pensamentos-chão. Pensamento-chão é grama e nasce do pé, É poema de pé no chão, É poema de gente normal, de gente simples, Gente de Espírito Santo. Eu venho de Espírito Santo. Eu sou do Espírito Santo, eu trago a Vitória do Espírito Santo. Santo é um espírito capaz de operar o milagre sobre si mesmo.

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IN(TENSO) (Karina Lopes Cabral) Cada um tem seu ritmo, cada um tem seu tempo, O que traz despertar é o que intimamente sopra o vento. Por vezes observo o 'INtenso' como aquele que é Tenso por dentro; Expressão rés do sujeito falador, cheio de defesas para o auto desamor. É um buscador de proteção, da Tensidade que carrega, Se prendendo ao mundo de fora, se perde nas possibilidades de entrega. Quanta fuga para evitar as próprias dores! Difícil confrontar à flor da pele, a vida temperada de dissabores. Reflexão não vem apenas da vontade: Suportar o espelho íntimo, exige da alma, coragem! Aos que esta não alcança, sobra outra alternativa: Os anestésicos, de todo tipo, ganham cadeira cativa. Quem não se ama, não descobre, nem vive a sutileza; Muita pressa, limite raso pra tudo, lida mal com a safadeza. A troca íntima acontece com quem não recusa a sombra; Desnuda a alma e se reconhece além do instinto e apressado gozo. Tocar o outro, é menos fora; Trocar com o outro, é mais dentro. Sem pressa...sem egoísmo, Com profundidade e sem medo.

ME DEIXE SER (Karina Lopes Cabral) Não gosto de hipocrisias, dessas que chegam e Assolam as famílias. Que num discurso efêmero, dilacera qualquer ousadia. Que bosta de vida é essa, sem cantoria, sem expressão do que pode ser alegria. Hipocrisia mata! Não me venham com essa de ser "boa menina"! Deixem as meninas soltas, deixem as mulheres loucas, deixem-as envoltas em prazeres vívidos, sinceros e originais. Não faça da sua hipocrisia, um ato marginal. A vida é rica com liberdade, da vida não vivida fica a saudade, de fantasias e alegorias regadas às vontades. Nesse mundo hipócrita, viver é deleitar-se em coragem.

(Karina Lopes Cabral) Quantas vezes fugi Querendo te encontrar, Paralisei no desejo De te ver voltar. Somos seres estúpidos, Não nos entregamos ao amor A vida é tão foda, Que nos faz buscar a dor. Será mesmo, culpada, a vida? Ou eu que não sei viver? Afinal, muita gente respira Só para sobreviver. Agora sei, viver vai muito além De só se sentir pertencente, Nesse triste arranjo dependente, De existir, apenas, se estiver com alguém. Troca boa é da alteridade, Da parceria sem vaidade. Estar contigo e comigo, Segura em ser, meu eterno abrigo. Se me entrego, sendo minha, Posso também ser tua, Sem medo, sem desculpas, Como um profundo encontro do Sol com a Lua.

FRUTÍFERA (Conceição Evaristo em “Poemas da recordação e outros movimentos” ) – Da solidão do fruto – De meu corpo ofereço as minhas frutescências, casca, polpa, semente. E vazada de mim mesma com desmesurada gula apalpo-me em oferta a fruta que sou. Mastigo-me e encontro o coração de meu próprio fruto, caroço aliciado, a entupir os vazios de meus entrededos. – Da partilha do fruto – De meu corpo ofereço as minhas frutescências, e ao leve desejo-roçar de quem me acolhe, entrego-me aos suados, suaves e úmidos gestos de indistintas mãos e de indistintos punhos, pois na maturação da fruta, em sua casca quase-quase rompida, boca proibida não há.

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EU-MULHER (Conceição Evaristo em “Poemas da recordação e outros movimentos”) Uma gota de leite me escorre entre os seios. Uma mancha de sangue me enfeita entre as pernas. Meia palavra mordida me foge da boca. Vagos desejos insinuam esperanças. Eu-mulher em rios vermelhos inauguro a vida. Em baixa voz violento os tímpanos do mundo. Antevejo. Antecipo. Antes-vivo Antes – agora – o que há de vir. Eu fêmea-matriz. Eu força-motriz. Eu-mulher abrigo da semente moto-contínuo do mundo.

INSTANTE ANUNCIADO (Manoel de Barros em ‘Face Imóvel’) Um chapéu velho! Eu não via seu rosto, que um velho chapéu, Esmaecido pelo sol, cobria. Mas sei que não chorava E nem tinha desejo de falar. Porque sabia que alguma coisa vinha chegando De manso, alguma coisa vinha chegando... Eu não via seu rosto, Seu rosto sombreado que um velho chapéu, Esmaecido pelo sol, cobria. Mas sei como ele amou aquele instante Mas sei com que prazer ele esperou Aquela que viria com os lábios úmidos para ele A que havia de vir passar as mãos Pelos seus joelhos feridos. Leitura simbólica: Símbolos interessantes neste belo poema de Manoel de Barros! Em linhas gerais, faço a leitura da temática do masculino e trago algumas perspectivas para reflexão, nos seguintes símbolos: Chapéu, velho chapéu, velho chapéu esmaecido pelo sol, rosto coberto pelo velho chapéu esmaecido pelo sol, joelhos feridos Pode-se pensar no chapéu como símbolo do que protege, preserva, resguarda a cabeça. A cabeça representando a mente, a razão, o controle. O sol como elemento da natureza que também representa o masculino, a racionalidade, a exposição, a concretude. Um chapéu desbotado pelo sol, pode ser visto como uma vivência intensa desta polaridade humana – a masculina. Rosto coberto pelo velho chapéu desbotado pelo sol, pode apresentar a perspectiva de uma identidade não revelada, escondida e protegida deste sol tão ardente. Ou seja: provavelmente esta pessoa tem muito mais a revelar, enquanto Totalidade, além desta postura enrijecida numa atitude puramente masculina. Além disso, o chapéu também indicando uma proteção já desbotada, sem cor, sem vivacidade, consequência de uma conduta unilateral, exposta por tanto tempo, que naturalmente trouxe desgaste para o corpo e, no poema, os joelhos estão feridos! Joelho fala de uma estrutura que pede flexibilidade, um “baixar a guarda” e reconhecer-se menor diante do Todo. Um ato de humildade que o Ego, quando assume o papel de mau soberano, não é capaz de curvar-se. Mas, felizmente, neste poema há alguém que espera em silêncio...e não chora...porque sabe que, mansamente, algo se aproxima... (ele apenas sabe! não calculou, não programou, não controlou, apenas sabe!) Tantas reticências ilustram a chegada desta outra polaridade! Esta que é silenciosa... branda... acolhedora...lunar. De alguma forma, aquele que traz os joelhos feridos, (se não estivessem feridos, será que se curvariam? Ou, justamente, as feridas vieram à tona porque ele, finalmente se curvou?) teve na proteção desgastada pelo sol, a oportunidade de abrir uma brecha de respiro para aquela que sempre esteve lá: vívida, potente... a dos lábios úmidos (não secos e esturricados pelo calor de um sol excessivo) e com mãos curativas - afinal, um masculino que permite ser tocado pelo feminino, romperá sua travessia neste deserto sem fim. Este oásis que se apresenta - e tão aguardado por aquele que esteve numa árdua travessia - é descrito pelo olhar poético da certeza do quanto aquele instante foi amado e com que tamanho prazer foi esperado o toque daquele feminino úmido e curativo. Assim funciona nossa relação íntima, independente de nosso gênero: não há possibilidade de fluidez, de criação, de expansão, se não nos relacionamos de maneira positiva com o feminino que nos compõe. O feminino é a expressão erótica (de Eros, o que possibilita o relacionamento) da nossa alma e é na permissão deste encontro que o clima e convivência com nossa intimidade e vínculos exteriores se amenizam! Um abraço! Karina Lopes Cabral

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