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Ciranda das Reflexões

Este espaço traz reflexões sobre temas diversos que, em algum momento, nos tocou e quisemos compartilhar, com o intuito de provocar novas reflexões em quem se sentir afetado por elas!

DEFESAS QUE ENDURECEM: UM CAMINHO NA CONTRAMÃO DA ALMA A psicologia analítica nos convida ao processo de individuação: uma jornada que revela à Consciência do Eu, o que manifesta a alma. É uma busca por tornar-se, verdadeiramente, quem se É. Ao trilharmos este caminho, porém, é inevitável depararmos com grandes obstáculos chamados 'defesas'. E por que elas chegam? Porque a maioria de nós carrega uma história psíquica marcada por todo tipo de violência, ao longo de nosso desenvolvimento. Somos seres sencientes! Desde a primeira infância, recebemos estímulos violentos : bullying, rejeição, abandono, intolerância, opressão, excesso de controle, agressões, abusos, comparações, desvalorizações etc. Cada experiência vivida é um impulso que gera dor, desconforto e mal estar. Faz parte de todo ser senciente a busca de adaptação à dor, como um mecanismo de sobrevivência; dentro deste processo adaptativo, são várias modulações envolvendo os processos fisiológicos, psicológicos e comportamentais. Desta forma, pode-se pensar que quanto mais uma pessoa sente-se violentada, maior é a defesa que ela vai construindo. Uma armadura que não se instala do dia para noite: ela vai se formando gradualmente, a cada controle excessivo... a cada distanciamento afetivo... a cada sarcasmo... autoexigência... medos etc. São escudos que vão se armando em busca de segurança e proteção. O triste é que, neste arranjo, vamos nos distanciando, também de nós! A psicologia profunda mostra que o ego tenta manter o controle frente ao caos interior; assim, ele rejeita tudo o que ameaça sua estabilidade - o que inclui as emoções intensas, os traumas, os desejos, as fragilidades - e estes conteúdos negados tornam-se rico alimento para nossos complexos. Como bem nos apresentou Jung, o que está negado pelo ego, não está morto! Estes conteúdos atuarão nas Sombras, gerando repetições, defesas e uma grande dificuldade de entrega! E, entregar-se é um gesto legítimo e profundo da alma! Uma entrega verdadeira envolve confiança, amor e um estar vulnerável - o que é impossível para quem desenvolveu tantas defesas desde sempre. A dificuldade de se entregar ao amor, ao prazer, à confiança, à vida, envolve, muitas vezes, questões mais profundas, como o medo de reviver feridas antigas, de perder-se ou de não suportar. Tantas defesas formam verdadeiros cascos, armaduras ou couraças que blindam a pessoa para qualquer tipo de entrega. Não raro, esta pessoa é considerada fria, grosseira e insensível. Mas quem consegue olhar para além da armadura, sabe que ali dentro tem alguém que carrega muita dor. Na psicologia analítica, compreendemos que essas defesas surgem como mecanismos do ego para preservar sua integridade frente a uma realidade psíquica insuportável. São tentativas da alma de sobreviver, mas quando mantidas por muito tempo, elas nos endurecem. As violências que vivemos nos ensinaram a endurecer: a sensibilidade é sufocada... a espontaneidade se cala... o sentir se retrai... Quando, corajosamente, encaramos a jornada de individuação, recebemos o convite para sentir, simbolizar, transformar e integrar. O sofrimento psíquico, ao ser escutado, torna-se ponte para a manifestação da alma. Um caminho doloroso, mas libertador! A alma não quer apenas sobreviver — ela quer viver! E viver envolve risco, entrega, abertura. O caminho da individuação é justamente esse movimento de escuta do inconsciente, da integração da Sombra, da morosa desconstrução das armaduras que nos impedem a inteireza. Diluir as defesas não representa se jogar sem critério, nem se expor ao perigo: é um processo lento, simbólico e corajoso de abrir espaço para o sentir. É a permissão da aproximação... do toque... do tornar-se permeável... o reencontro com a sensibilidade que ficou congelada. Ao olharmos para nossas defesas com consciência, abrimos a primeira brecha. E ali, por entre as fendas da rigidez, a alma pode começar a florescer novamente. Até a próxima! Karina Lopes Cabral

COMPULSÕES A palavra compulsão carrega a ideia de algo que é imposto ou forçado, seja por uma força interna - como um impulso, ou externa - como uma ordem. É derivada do verbo latino compellere, que significa 'impelir', 'obrigar', 'forçar'. Pode ser entendida, em essência, como um impulso ou um desejo irresistível de executar uma ação, que ultrapassa o controle egoico. Muitas vezes, a pessoa reconhece a atitude prejudicial, mas isso não é suficiente para impedir que o desgaste aconteça. Pelo viés da psicologia profunda, a compulsão pode ser entendida como tentativas inconscientes de compensar arranjos psíquicos que estão desequilibrados na consciência do Eu. Ou seja, quando o indivíduo ignora suas demandas emocionais, seus desejos, seus conflitos internos, o Inconsciente fará seu papel de autorregulação e revelará, de alguma forma, o que está descompensado. Esta dinâmica gera muita ansiedade e, não por um acaso, compulsões e vícios geralmente se misturam e se confundem. As compulsões mais reconhecidas estão ligadas à comida, trabalho, sexo, jogos, drogas, compras, limpeza, organização, acumulação e verificação. Exemplos clássicos logo aparecem: -lavar as mãos repetidamente, por medo de contaminação; - verificar portas, luzes, gás, tomadas, várias vezes; - encher o carrinho virtual nos aplicativos de compra; - roer as unhas, cutucar a pele, não parar de balançar as pernas. - acionar o IIfood ou o Drive Thru mais próximo; - atravessar a madrugada no computador trabalhando, estudando ou consumindo pornografia; - ruminar infinitamente; - acender o próximo cigarro, bolar o próximo baseado, etc. Compreendo que as compulsões, assim como toda manifestação humana, são carregadas de símbolos e cada pessoa expressa o que pede a alma. Nada é aleatório! A leitura simbólica das compulsões, ajuda a identificar o que sente falta a alma e de qual angústia ela está querendo se livrar. Cada individualidade carrega sua necessidade, mas, a nível de ilustração, pode-se generalizar algumas imagens e pensar a compulsão alimentar como uma busca de nutrição emocional (que se liga ao arquétipo materno, com feridas de rejeição e abandono); compulsões sexuais podem denunciar a repressão erótica (por condenações de ordem moral religiosa); compulsões por limpeza podem evidenciar defesas diante do contato com as Sombras e, assim por diante. Como disse, são exemplos gerais, que ajudam a entender que as compulsões estão ligadas aos complexos e estes atuam de maneira autônoma. De maneira simplificada, toda compulsão denuncia uma falta que busca, desesperadamente, ser preenchida. O sofrimento, a angústia, a ansiedade são legítimas e tentar controlar esses impulsos de forma racional é agredir, ainda mais, uma alma que pede socorro, há tempos. Assim, a repressão nunca é uma boa solução! As compulsões, quando olhadas com profundidade simbólica, podem se tornar caminhos para o processo de individuação, pois revelam aspectos psíquicos que buscam ser reconhecidos, acolhidos e integrados. Trabalhar com recursos que permitam espaços para esta amplificação simbólica, é de riquíssima ajuda! Na psicologia profunda contamos com a análise, com os recursos lúdicos e de arteterapia, técnicas de sandplay, a imaginação ativa, a ampliação dos sonhos e tudo o que cada pessoa possa manifestar de sua alma. O importante é reconhecer que não se compra uma briga direta com a compulsão. Isto não é efetivo! Ela está, de alguma forma, atuando para o entendimento do indivíduo sobre suas faltas e desejando reconexão com o Self. Nesta perspectiva, a compulsão atua como uma tentativa frustrada de religação ao fluxo do Sagrado, interrompido por tantos motivos. A busca é pelo Sentido, pela conexão com o Algo Maior que está, subjetivamente, perdido! Entendo que a possibilidade de reencontro acontece através da não repressão, do sacrifício e da transcendência. Aí está a jornada de individuação! Até a próxima! Karina Lopes Cabral

TRANSTORNOS DE ANSIEDADE: ALGUMAS REFLEXÕES Os transtornos de ansiedade estão entre as experiências psíquicas mais comuns da sociedade contemporânea, infelizmente. Milhões de pessoas em constante estado de alerta, sensação de desespero, agitação mental, pensamentos intrusivos, insônia, esgotamento físico e mental, auto julgamento, medo, irritabilidade, falta de ar etc. O sofrimento não é pequeno e tudo isso é vivido enquanto cada pessoa tenta se ajustar e manter sua rotina. Em cada individualidade, um caos particular! Os fármacos psiquiátricos são grandes aliados no alívio de tamanha aflição, mas considero que uma leitura simbólica, pelo entendimento da psicologia profunda, seja de fundamental ajuda, pois não limita os sintomas psíquicos em diagnósticos patologizantes, que precisam ser eliminados. Jung compartilhou a compreensão de que estes sintomas carregam símbolos que revelam um pedido de integração da alma, dos aspectos negligenciados pela Consciência do Eu. Essa foi uma de suas grandes contribuições à psicologia. No caso dos transtornos de ansiedade, pode-se pensar numa avalanche de imagens internas e exigências externas que colapsam o ego: este fica sempre em alerta, buscando defesas do que considera ameaça; a mente não silencia e tampouco as emoções! Toda manifestação é intensa e consome a energia do indivíduo - que oscila entre picos de agitação seguida de posterior fadiga e prostração. Falta espaço para respiro, descanso e harmonia. Deste modo, é possível pensar no transtorno de ansiedade como um confronto com o desconhecido dentro de Si. O Self, enquanto centro regulador da psique, busca manifestar-se e o ego compreende tal presença como ameaça, não permitindo que elementos essenciais para o desenvolvimento do indivíduo sejam integrados. Esta dinâmica evidencia a rígida postura egoica de pessoas com atitude fortemente controladora - o que só faz aumentar o sofrimento. Por sua vez, a agitação chega como um movimento compensatório: uma tentativa inconsciente de evitar o silêncio que revelaria o abismo interior. A pessoa se ocupa, se acelera, se consome, faz de tudo para evitar a escuta da própria alma! Porém, é justamente nesse confronto com o vazio que reside a possibilidade de uma escuta legítima, uma integração efetiva. O desespero sentido não é algo a ser silenciado ou eliminado: na verdade, ele é um chamado para o que clama a alma! A ansiedade, nesta perspectiva, atua como possibilidade de encontro com as profundezas da psique. Esta não é uma fala romantizada, pois, uma travessia como esta exige muita coragem para desconstruir personas e defesas que estiveram presentes, muitas vezes, como forma de sobrevivência psíquica. Essa reflexão pode ser ampliada pela visão de James Hillman, que ao apresentar a psicologia arquetípica, propôs que a alma tem linguagem própria — e que os sintomas são partes dessa linguagem. Assim, ao invés de tentar suprimir a ansiedade, o convite é para escutá-la. Para Hillman, a alma não quer ser 'curada' no sentido moderno: ela quer ser compreendida, respeitada e imaginada. Desse modo, os transtornos de ansiedade não são patologias a serem erradicadas, mas narrativas simbólicas que precisam ser escutadas com imaginação. Enquanto a psicologia analítica de Jung propõe o caminho da individuação — através da integração dos opostos e a escuta dos sonhos — Hillman propõe o retorno à alma como um território plural, povoado por deuses, imagens e mitos. Para ele, a 'cura' está menos na busca por equilíbrio e mais na capacidade de viver, com profundidade, as múltiplas vozes da psique. Seja pela perspectiva analítica ou arquetípica, o sofrimento ansioso pode ser reconduzido ao seu lugar sagrado: não como erro, mas como expressão! A escuta simbólica e imaginal dos sintomas ansiosos, transformam o desespero em pergunta e a agitação em movimento criativo - de uma alma que ainda pulsa, que ainda deseja, que ainda sonha — mesmo quando tudo parece perdido. Que ela possa ser ouvida! Até a próxima! Karina Lopes Cabral

PRINCESAS QUE JÁ NÃO ESPERAM: A DESCONSTRUÇÃO DO AMOR ROMÂNTICO As princesas da Disney foram, por décadas, o arquétipo da donzela que espera pelo príncipe salvador. Esses contos repetem o mito do amor redentor, onde a mulher, passiva e submissa, encontra sentido apenas ao ser escolhida. Pela perspectiva da psicologia profunda, ao refletir sobre as imagens, símbolos e arquétipos, surge o questionamento: o que essas histórias revelam do inconsciente coletivo de seu tempo? Como as transformações nas novas narrativas indicam o surgimento de novos sentidos para o feminino e para o amor? Na psicologia analítica, os contos de fadas são compreendidos como expressões simbólicas da alma humana. As princesas tradicionais apresentadas pela Disney — como a Branca de Neve, a Cinderela, a Ariel ou a Aurora — apresentam o feminino em atitude passiva e submissa: bela, pura, receptiva, em busca de completude no masculino externo. Elas representam muito bem a mulher submetida ao patriarcado. Nessas narrativas, o amor aparece como salvação e redenção. Não há movimento para individuação: a realização vem a partir do outro - o que denuncia uma anulação de Si e grande dependência emocional: o estereótipo do amor romântico. Nos contos de fadas, se reforça a imagem de uma psique dependente do masculino externo para ser inteira. O herói masculino resolve os conflitos, atravessa perigos, mata monstros — enquanto a princesa dorme ou aguarda. No inconsciente coletivo, isso projeta um modelo de amor idealizado, salvador e uma mulher que se mantém incapaz, incompleta e infantilizada. Por volta de 2012, começam a surgir algumas transformações simbólicas em relação às princesas. No lugar das donzelas, surgem personagens como a Merida (Valente -2012), Elsa (Frozen - 2014) ou Moana (Moana - 2017) que não têm o amor romântico como destino. Elas encarnam o feminino em processo de individuação — enfrentam desafios, fazem escolhas, buscam seu próprio centro psíquico. O amor que aparece, é ressignificado: é amor próprio, fraterno, familiar, dedicado à missão ou à ancestralidade. Essa proposta de individuação as levam não ao encontro de um príncipe, mas, sim, às próprias Sombras e à integração com o Self. Assim, a relação amorosa, tal como apresentado nos contos antigos, não cabe mais nessa nova configuração. A mulher não precisa mais da validação masculina para existir. O amor não se vive apenas numa relação conjugal, ao encontrar a "outra metade". Esta mudança de postura revela uma transformação arquetípica do feminino submisso e anulado para o feminino ativo e criador. Mesmo reconhecendo os interesses mercadológicos da grande empresa Disney, isso não anula o valor das animações enquanto respostas às necessidades de novos modelos para a alma coletiva. Felizmente, as novas gerações vão sendo alimentadas por imagens que favorecem a autonomia, a responsabilidade psíquica e a diversidade de arranjos possíveis, fora do amor romântico tradicional. O que antes era uma espera por amor, hoje vai se naturalizando a jornada por Si. A psicologia analítica nos permite perceber que aspectos do feminino estão sendo redesenhados nas imagens culturais e vão reconfigurando nossas relações com as imagens arquetípicas. As princesas tradicionais ja não representam as necessidades que as heroínas atuais revelam: serem mais inteiras, plurais e conscientes! Até a próxima! Karina Lopes Cabral

O IMPACTO DA NOVA CONFIGURAÇÃO DO PAPEL DA MULHER NA SOCIEDADE Considerando alguns dados históricos, as mulheres começam a questionar seus papéis na sociedade, por volta do séc. 15, mas é no final do séc.18 que os movimentos feministas começam a ganhar uma estrutura mais organizada. Desde então, a história vem revelando conquistas importantíssimas de nós, mulheres, ao direito de existirmos com autonomia, fora da subordinação patriarcal. O impacto destas mudanças vão acontecendo lentamente e transgeracionalmente. A cada geração, um pouco mais destas conquistas se faz presente. Claro que o conservadorismo ainda impera, no entanto, é perceptível algumas mudanças de comportamento social nas posturas de gênero. Atualmente, percebe-se que os homens estão mais confusos em relação aos seus papéis, uma vez que as mulheres já não se subordinam como antes. E, como ficam as relações amorosas, nestes relacionamentos heteronormativos? A queixa de cansaço e desânimo em encontrarem parcerias compatíveis, só cresce! Podemos pensar que as transformações sociais das últimas décadas trouxeram à mulher o desejo por parcerias e não mais dependência; aumentou a necessidade da reciprocidade emocional e menor tolerância à submissão das violências; há maior reivindicação de espaço, voz, autonomia, desejo e autenticidade. Os homens também estão afetados pelas transformações, mas desafiar a resistência egoica de poder, soberania, invulnerabilidade ainda é muito difícil. Felizmente, alguns espaços para essa discussão começam a surgir entre os homens e temáticas sobre a masculinidade frágil, relacionamentos tóxicos, gaslighting vão chegando, também, entre eles. Assim, a persona masculina tradicional está em colapso e pede atualizações, pois as mulheres estão revendo seus papéis de mãe, esposa ou objeto de desejo. Para além do julgamento do que é certo ou o errado nos arranjos heteronormativos, considero interessante a reflexão sobre as mudanças arquetípicas que estão em trânsito nas imagens do homem e da mulher; essa binaridade vai sendo desconstruída e um espaço simbólico e social se abre à pluralidade de gênero. No caso das mulheres que buscam a desconstrução do machismo estrutural que assola a sociedade, viver este período histórico de transição, acompanha uma profunda sensação de solidão, pois não há entrega verdadeira das emoções; falta reciprocidade, entrega e envolvimento emocional por parte dos parceiros: as relações não preenchem e o que domina é uma sensação de vazio. Um vazio que, muitas vezes, inclui as relações de amizades, pois ainda há muito o que desconstruir do machismo estrutural, também, entre as mulheres. Os conflitos são grandes: por um lado, há consideráveis conquistas e avanços coletivos/sociais, por outro, há o desafio de integrar essas conquistas de maneira mais efetiva nas individualidades. Concluindo, considero que cada mulher que enfrenta sua jornada de individuação é extremamente corajosa, pois o que enfrenta não é pouco! E são essas mulheres que vão encorpando as vozes coletivas. A transformação é lenta, mas está em trânsito! O desejo é que os homens que já conseguem refletir sobre esta temática, tenham a mesma coragem de atuar nesta tão necessária desconstrução. Seguimos! Até a próxima! Karina Lopes Cabral

O MUNDO SANGRA E A ALMA GRITA Enfrentamos tempos difíceis, onde parece cada vez mais custoso manter-se atualizada de todas as notícias do mundo: guerras, inúmeras mortes, tragédias, conflitos, violências de toda natureza, relações vazias de sentido, etc. Vivendo na era tecnológica, a enxurrada de notícias concomitantes nos atravessa em proporções absurdas. O volume de informação que consumimos é incomparável às outras décadas. Assim, o impacto da violência e desamores do mundo nos atinge de maneira avassaladora e, não por um acaso, vivemos um colapso da saúde mental. Paira no ar uma sombra coletiva altamente destrutiva; sombra esta que atua em cada inconsciente pessoal e reforça a propagação de toda tragédia, quando a pessoa não se dá conta do que carrega nos bastidores da própria vida. Jung trouxe suas reflexões sobre a guerra como o resultado da atuação de um inconsciente coletivo atuando de maneira desgovernada. Sim, quanto maior a negação da Sombra, maior seu poder de aniquilação. A humanidade estruturada na sociedade de consumo, em nenhum momento abre espaço para o reconhecimento de que o planeta está sendo consumido, literalmente! Não é difícil perceber que, as atuações coletivas que buscam alertar para o perigo que corremos ao continuarmos neste estilo de vida, são incansavelmente silenciados. No âmbito da psicologia profunda, o que se identifica deste movimento é que as imagens arquetípicas do herói, do tirano, do mártir, da vítima se constelam intensamente e se alastram pelas redes sociais nas pessoas dos líderes, dos coletivos, da massa. E onde não há senso crítico e elaboração de Consciência, há espaço propício para proliferação de manipulação dos Poderes. Então, é muita gente gritando, mas pouca gente, de fato, conseguindo fazer a diferença. Jung também falou sobre isso ao abordar a alienação do homem moderno de Si, da natureza e do outro. Dizia que o homem moderno está perdido, porque se esqueceu da própria alma. Concordo com ele. Estamos bem distantes de uma relação legítima com a própria alma. Muito se fala de religião, religiosidade e espiritualidade, mas estes espaços também estão profundamente contaminados pela ganância e pela racionalidade. As buscas espirituais tornaram-se atrações, comércios e propagação de Ego na maioria dos lugares, deslegitimando trabalhos que poderiam ser fontes de profundidade e recurso válido do encontro com a alma. Admito meu olhar pessimista, mas o considero real. Percebo que o mundo sangra e as almas continuam gritando por sentido. Será que a humanidade será capaz de, um dia, escutar o sentido da alma? Por quantas mais guerras teremos que passar? Por isso, a visão de Jung sobre a individuação é a que me faz mais sentido. Toda transformação externa é reflexo do que acontece na subjetividade de cada pessoa. A individuação não busca perfeição ou idealização: ela busca consciência e inteireza por parte do indivíduo. A resposta vem de dentro e não de fora. Gritar coletivamente faz todo sentido, quando há discriminação de Si e de seu papel na sociedade. Alheia a esta percepção, torna-se-á mais um grito de performance: vazio de sentido e nada efetivo. Há quem pense diferente, mas me identifico com a perspectiva de Jung de que cada ser humano que se reconcilia consigo, é uma fresta iluminada que rompe a escuridão e é assim que grandes transformações tornam-se possíveis. Até a próxima Karina Lopes Cabral

FAMÍLIAS DISFUNCIONAIS E SOFRIMENTO PSÍQUICO No campo do que pode ser entendido como um ideal de família saudável, espera-se um ambiente de promoção de afeto, cuidado, acolhimento e segurança para uma construção de identidade sólida, capaz de dialogar, escutar e fazer enfrentamentos, diante das desavenças que naturalmente surgem nas relações. Este é o básico de uma família funcional, no entanto, parece utopia quando a descrevemos assim. E por quê? Porque dificilmente identificamos tal arranjo em nossas experiências: a realidade mostra, majoritariamente e infelizmente, uma base de atuação familiar disfuncional. Considero esta temática importante, como forma de reflexão daquilo que nos compõe e nem sempre conseguimos reconhecer, pelo fato de fazermos parte desta dinâmica e acabarmos naturalizando e, ainda pior, reproduzindo o que deveria ser insistentemente combatido. Assim, a nível de explicação e orientação, descrevo que a família disfuncional é caracterizada por alguns pontos: - FALTA DE AFETO OU EXCESSO DE CONTROLE - NEGLIGÊNCIA FÍSICA E EMOCIONAL AGRESSIVIDADE NA COMUNICAÇÃO (silêncios prolongados, chantagens, sarcasmos, invalidação dos sentimentos, falta de escuta) - ABUSOS (físico, emocional, psicológico, financeiro ou moral) - PAPÉIS FAMILIARES INVERTIDOS OU RÍGIDOS - DEPENDÊNCIAS (quimica, emocional, etílica - que impactam diretamente a convivência familiar) - SEGREDOS E TABUS (assuntos que não podem ser discutidos ou nomeados, gerando culpas e medos) Estes são pontos que impactam diretamente a saúde mental de toda pessoa e, como sabido, atravessam gerações. Um ciclo que se altera somente quando há conscientização e elaboração emocional dos eventos. As crianças desenvolvidas em famílias disfuncionais, (o que inclui a maioria de nós), tornar-se-ão pessoas com questões significativas de autoestima, medo constante de rejeição e abandono, dificuldade em confiar, vincular, se entregar, excessiva autocobrança, repetições dessas violências nas relações amorosas vividas fora do ambiente familiar. Nestes arranjos disfuncionais, os complexos se entrelaçam de maneira inconsciente e o que se herda é uma Sombra familiar que a criança vai assimilando ao longo de seu desenvolvimento, distanciando-a da possibilidade de uma relação mais autêntica e profunda com o próprio Self. Resultado: relações dependentes e não legitimamente amorosas. Por isso, considero o caminho de conscientização da responsabilidade emocional das figuras parentais muito legítimo para que o básico não seja visto como um arranjo de utópico! Sombras familiares não integradas à Consciência do Eu, geram sofrimentos psíquicos e colaboram para o surgimento do que é diagnosticado como depressão, transtornos de ansiedade e de atenção, compulsões, fobias, comportamentos obsessivos, crises existenciais etc. Não à toa, as patologias estão associadas às questões emocionais; toda pessoa tem na família sua referência e é dela que vem o impacto e impulso determinante de considerável parte do desenvolvimento de cada pessoa. Cuidar deste aspecto familiar é colaborar para a desconstrução da ideia dogmática de que família tem que ser reverenciada acima de tudo. Não acredito nisso! Acredito que para além do moralismo religioso, existe o compromisso com a saúde mental (e integral) de cada pessoa em seu processo de individuação. Famílias disfuncionais não geram saúde: geram traumas e adoecimento psíquico! Até a próxima! Karina Lopes Cabral

BULLYING FAMILIAR x AUTOESTIMA: EMBUSTES DESTRUTIVOS O bullying, em geral, é associado ao ambiente escolar, onde crianças e adolescentes sofrem violências e nem sempre recebem o acolhimento necessário. Compartilho a perspectiva de que esta falta de suporte emocional pode vir, principalmente, do lugar que deveria ser fonte de segurança e amor: a própria família! São infindáveis exemplos de pessoas adultas que não são capazes de enxergar que seus comportamentos são agressivos, violentos e constrangedores e ferem profundamente a autoestima de alguém. Além da clássica ironia, apelidos pejorativos (ou tidos como 'carinhosos' ) e ofensas disfarçadas de brincadeira, é importante destacar que o bullying também é composto pelas comparações, pelo silêncio como forma de punição, pelo excesso de críticas, julgamentos e pela exclusão. Familiares - principalmente as figuras responsáveis pelo desenvolvimento da criança - negam a violência, argumentando que é brincadeira (nas situações ofensivas e constrangedoras) ou maneiras de educar (no caso do silêncio, julgamento e exclusão). Essas pessoas não percebem que, na verdade, não estão brincando, nem educando: estão machucando, ferindo e destruindo a autoestima de um ser humano em desenvolvimento. Pela linguagem da psicologia analítica, pode-se dizer que o bullying é um fenômeno simbólico que envolve as relações e revelam conflitos inconscientes (individuais e coletivos) de pessoas adultas que projetam suas sombras e causam grandes estragos emocionais. Uma criança sem autoestima, distorce suas relações de afeto, torna-se vulnerável e, com facilidade, absorve a sombra alheia internalizando as agressões (disfarçadas de 'brincadeiras') e passa a acreditar que merece ser maltratada. E, claro, muitas delas reproduzirão este comportamento dentro do ambiente escolar: sejam para agredir ou por serem agredidas. Quero destacar que a autoestima está diretamente ligada ao processo de individuação: a busca por ser realmete quem se É, envolve segurança para se aproximar de um Self autêntico e não do falso Self - geralmente identificado quando a pessoa está em seu 'modo sobrevivência', como costumo dizer. Além disso, nos contextos de bullying, não é difícil identificar as personas manifestas. São psiques feridas que estão agredindo ou sendo agredidas. Muito triste presenciar situações de bullying infantil onde escuto: "isso não é nada! É brincadeira normal de criança". A prática clínica me mostra que não: não é brincadeira normal de criança; apelidos ofensivos e constrangedores não são formas de demonstrar afetos, nem entre adultos! As crianças internalizam suas dores, criam traumas e se distanciam de um desenvolvimento seguro com o próprio corpo e identidade. Tornam-se pessoas adultas com queixas profundas de rejeição, baixo autoestima, inúmeras travas, sentimentos de inadequação, culpa e, dolorosamente, não se sentem amadas. O bullying familiar fere absurdamente a inocência da criança! Violência não é frescura. Constranger alguém pelas suas características não é brincadeira: é dor projetada e absorvida! Crianças que se desenvolvem nesta atmosfera, não têm recursos psíquicos internos para lidar com a situação. Ela se fragmenta, tentando se manter inteira, assume a culpa, na tentativa de não perder o 'amor' que lhe é dado. A criança desenvolve uma autopunição, repetindo internamente a agressão sofrida. A consequência deste arranjo cruel é o distanciamento do Self (o arquétipo regulador da psique) e a pessoa torna-se alienada de Si. As consequências aparecem nas relações amorosas, que dificilmente serão legítimas. O que prevalece é o sentimento de vazio, distorção de imagem, sensação de não pertencimento e inadequação existencial. Como dizer que isso é amor? Dentro do manejo clínico, a busca é por simbolizar as violências vividas, buscar ressignificação e integração dos conteúdos internalizados, incluindo a Sombra, para que a pessoa se perceba capaz de relacionar-se mais genuinamente com seus amores, buscando recuperar-se dos traumas causados pelos complexos familiares. Desenvolver uma narrativa interna mais consciente, desconstruindo a dor da humilhação e submissão é um trabalho árduo, que envolve coragem de entrar em contato com dores e vazios que, em muitos momentos, beira o insuportável! Muita dor seria poupada se sentimentos alheios não fossem banalizados, se as pessoas, finalmente, entendessem que amor, respeito, encorajamento, suporte e incentivo não vêm através de falas pejorativas, de silêncios, de castigos. Um desejo utópico para nossa configuração atual de sociedade, mas confio nos espaços de transformação que vão surgindo! Até a próxima! Karina Lopes Cabral

O EXCESSO DE QUEM CUIDA E A FERIDA DO ABANDONO Pessoas que cuidam demais, em geral, carregam marcas profundas de abandono em suas histórias. Abandono que não necessariamente é físico e literal: em grande parte das vezes, é uma ferida psíquica que abalou a estrutura da pessoa em momentos de seu desenvolvimento, pela falta de acolhimento, suporte, proteção e segurança que suprissem a necessidade deste ser. Numa linguagem simbólica, a pessoa que cuida demais se associa às imagens do arquétipo da Grande Mãe, que em sua polaridade ativa, demonstra este excesso de cuidado, maternando as parcerias e vínculos afetivos - o que não raro alimenta as relações de dependência. Esta conduta é típica da manifestação do Complexo Materno, composto tanto por seus aspectos luminosos, quanto sombrios do arquétipo. Assim, ao mesmo tempo que se manifestam condutas de acolhimento, cuidado, nutrição etc., pode acontecer, quando Sombra não é reconhecida e integrada, condutas de controle, posse, sufocamento e abandono. Crianças que se desenvolvem neste arranjo, normalmente reproduzem o mesmo padrão na vida adulta, revelando a mesma ambiguidade: uma parte busca controlar as relações como forma (inconsciente) de garantir afeto. A ferida do abandono reverbera na constante sensação de carência, desamparo, insegurança e dependência. Dentro desta reflexão, considero importante destacar que a ferida do abandono de quem cuida demais recai, principalmente, sobre as mulheres. Podemos pensar, aqui, na manifestação de um Complexo Cultural, surgido da construção histórica e patriarcal que introjeta na sociedade a ideia de que a mulher existe para gerar e cuidar de filhos e a coloca como responsável por identificar e assumir a reponsabilidade de cuidado com os outros - homens, família, sociedade como um todo. O atravessamento patriarcal atribui à mulher o conceito de que sua natureza se limita às funções de cuidado, nutrição, acolhimento e a induz a aceitar e não questionar o papel de sua existência. Neste sentido, o papel do feminino enquanto potência, fonte geradora de vida, nutrição e criatividade, foi violentamente deturpado. O feminino se torna expressão de renúncia, autocancelamento, excesso de carga emocional e 'romantização' da palavra "guerreira". Nessa inversão de valores, fica introjetado na psique coletiva, que a mulher deve cuidar dos outros antes de Si, que o amor significa sacrifício, que autocuidado é egoísmo, que autonomia é postura inadequada, que pedir ajuda é sinônimo de fraqueza e tantas outras situações que nós, mulheres, vivemos diariamente. A consequência deste arranjo vem na exaustão, na culpa, na construção de relacionamentos desiguais (onde a mulher cuida mas não é cuidada), na frustração ou na raiva que não pode ser assumida. Mais uma vez, aparece a ambiguidade: o desejo de se libertar de tanto peso, mas a culpa pela responsabilidade que carrega pelo que é do outro, além do medo do abandono. Uma combinação muito pesada, que desencadeia inúmeras somatizações e atravessa gerações, há séculos! Esta herança arquetípica transborda no inconsciente coletivo feminino e nós, mulheres, carregamos sem perceber as dores, lutos, esgotamento, raiva e frustrações de todas as mulheres que vieram antes de nós. Como sempre destaco, a violência patriarcal atravessa todas as pessoas, independentemente de gênero. Homens que cuidam, geralmente, não se encaixam no modelo masculino predominante. Meninos, desde muito cedo, são ensinados que cuidado, acolhimento, sensibilidade e vulnerabilidade são 'coisas de meninas', portanto, inadequada para eles. Quando escolhem cuidar, desafiam o contrato social vigente, que associa masculinidade à força, controle, racionalidade e 'frieza' das emoções. Assim, homens que cuidam demais carregam a culpa (insconsciente) de estarem 'falhando como homens' e vivem uma tensão constante entre o desejo de oferecer cuidado e a obrigação de serem 'machos'. Enfim, o absolutismo patriarcal gera infinitos prejuízos à sociedade, às pessoas, às individualidades. É um grande aprisionamento da sensibilidade humana, onde os afetos não podem ser experenciados genuinamente e as relações de cuidado ficam fortemente distorcidas e descompensadas. O resultado é uma ferida coletiva de abandono e tentativas frustradas de compensações que só aumentam nosso distanciamento afetivo. Neste sentido, a humanidade pede socorro. Até a próxima! Karina Lopes Cabral

TRAUMAS E RELAÇÕES AFETIVAS Os traumas emocionais, vividos principalmente na infância, trazem um desenvolvimento prejudicado do indivíduo com a própria natureza, regendo a maneira como a pessoa se relaciona consigo e com os outros, influenciando a forma como ela estabelece seus vínculos. Donald Kalsched, analista junguiano, apresenta em seu livro 'O Mundo Interior do Trauma', uma visão profunda de como os traumas relacionados a apegos e abandonos acarretam um sistema de defesa arquetípica, desenvolvido pela psique infantil como forma de proteção às vulnerabilidades, na busca de evitar a dor insuportável gerada pelo baque sofrido. Costumo dizer que a criança vai ativando seu 'modo sobrevivência' para continuar sua jornada de desenvolvimento, o que resulta bons resultados, no sentido da pessoa manter a condição de estar no mundo desenvolvendo suas habilidades, autonomia, fazendo a vida acontecer de alguma forma, o que, geralmente, acontece com muito sucesso. Do que compreendo como ideia geral de Kalsched, diante do trauma ocorre uma dissociação como forma de sobrevivência: a psique não reprime (como diria Freud) mas ela fragmenta a experiência traumática, dividindo a consciência em partes que não se conversam e, aparentemente, o trauma fica contido. Jung compreendia essa fragmentação da consciência como o trauma sendo também responsável pelos 'complexos autônomos', uma vez que ele causa uma ruptura no fluxo natural da energia psíquica e esta fica 'ilhada' em pequenos núcleos emocionais - os complexos. Por isso, popularmente, é dito que determinada situação 'gerou gatilho' - quando emoções desconfortáveis são revividas. Na verdade, uma experiência externa ativou algum dos complexos e direcionou a pessoa ao trauma original. Na superfície, a vida acontece em muitos âmbitos, mas o prejuízo do trauma aparecerá, inevitavelmente, nas experiências íntimas e amorosas. Por isso, pessoas traumatizadas, muitas vezes, sabotam as relações afetivas, as experiências de alegria, conquistas e sentem dificuldade em desfrutar o prazer. Os relacionamentos que envolvem intimidade, geralmente, ativam os complexos e se eles não são trabalhados e integrados à consciência, resultam em projeções e dificuldades nas interações. Um exemplo clássico é o trauma do abandono que, não raro, desenvolve um 'complexo de rejeição' e a pessoa se sente em constante ameaça diante da menor distância alheia. Nas relações amorosas como um todo, é muito comum, embora muito triste, a dificuldade de se entregar a um abraço, um beijo, um elogio, um presente ou um afeto genuíno. Nas relações afetivo sexuais, também aparece a dificuldade em se entregar ao toque, às sensações prazerosas e chegar ao orgasmo, pois sexualidade também envolve confiança e pessoas traumatizadas não conseguem confiar. Como grande parte deste arranjo é inconsciente, as pessoas traumatizadas acabam projetando na parceria um ideal de salvação, ou revivendo a situação de vítima diante do agressor. De uma forma ou de outra, a entrega não acontece. As escolhas supostamente amorosas, muitas vezes revelam que, o que se supõe amor é, na verdade, abuso, dependência e reprodução do trauma vivido. Viver uma situação verdadeiramente amorosa, implica recolher as projeções e reintegrar as partes fragmentadas da psique. Um trabalho árduo, que demanda coragem, investimento e enfrentamento contínuo na jornada de individuação. Por mais ilógico que pareça, a pessoa traumatizada não consegue dar abertura para o amor e trocas genuínas porque na inversão de valores que vive, o amor parece machucar. Isto soa tão absurdo e incoerente não é mesmo? Mas é real e muito mais comum do que se imagina. Será que a gente verdadeiramente ama ou acha que ama? Como definir o que é o amor? O amor não tem uma única e exclusiva definição. Percebo que cada pessoa vai subjetivamente descobrindo o que lhe significa amar, mas quando a história envolve traumas, esta experiência será deturpada, caso não seja olhada! Muito difícil amar, sem a ressignificação simbólica dos traumas vividos. O amor tem sua potência transformadora e, neste sentido, toda escolha compreendida como amorosa é um espelho da alma na jornada de individuação. Se na parceria há entrega e reciprocidade, muita coisa se elabora e se integra na relação. Quando o olhar é unilateral, fica mais difícil a elaboração. Até a próxima! Karina Lopes Cabral

ASPECTOS SIMBÓLICOS SOBRE O SAGRADO E O PROFANO Considero o sagrado e o profano uma temática que muito me estimula, pela riqueza reflexiva e questionadora que ela inspira. São conceitos que permeiam e influenciam toda experiência humana e esbarram em valores morais que provocam um olhar à individualidade tão necessário para o desenvolvimento da humanidade. Sagrado vem do latim 'sacrum' que significa 'dedicado aos deuses'; Profano vem do latim 'profanus' (pro = diante de / fanum = templo); significa 'aquilo que não está consagrado;' 'o que está fora dos limites do espaço sagrado'. Como estes termos podem ser olhados pela perspectiva da psicologia analítica? Simbolicamente, o sagrado representa a relação que o indivíduo estabelece com o Self - compreendido como o arquétipo da totalidade psíquica, que atua como o centro regulador da psique. Neste sentido, a relação com o sagrado envolve experiências místicas, numinosas, de transcendência, que trabalham a favor da integração e do sentido de cada pessoa com seus conteúdos. Experiências que favorecem a apresentação de imagens, manifestadas em sonhos, visões, mandalas, imaginações etc. O profano pode ser compreendido, simbolicamente, como a relação da Consciência do Eu com os aspectos densos, concretos, racionais da rotina, da vida objetiva do indivíduo: uma relação mais externa e menos ligada à dimensão sutil, interior ou contemplativa. Importante destacar que falar das vivências entre o sagrado e o profano não é estabelecer um juízo de valor, como a moralidade humana tende a fazer. Sagrado não é sinônimo de 'bom' e profano de 'mal'. Na verdade, considero interessante pensar numa certa incompletude ou limitação do profano quando o sagrado é negado. O profano desempenha sua importância em todo o desenvolvimento da vida prática e concreta que o indivíduo necessita, mas quando ele não estabelece uma relação com o sagrado, corre o risco de permanecer alienado, submisso às condições rasas, sem reconhecimento de suas potências, aprisionado no controle e demanda do pensamento. Assim, quando a psicologia analítica refere o processo de individuação como um fundamento do desenvolvimento humano, é possível considerar que este é um processo da Consciência do Eu (ligada aos aspectos profanos) que se destina ao encontro e integração do Self (relacionado aos aspectos sagrados). A jornada de individuação busca resgatar e integrar as divisões profanas, ampliando a Consciência do Eu para um estado ou vislumbre de sua totalidade. Ao longo desta jornada, símbolos do sagrado se manifestam como grandes guias da psique; as imagens arquetípicas colaboram e estão sempre a favor do processo de individuação! Cada pessoa vai descobrindo em sua trajetória, a maneira como o sagrado se manifesta em sua história. Por isso considero as ritualísticas, dinâmicas tão ricas para o processo de individuação, mas que, infelizmente, tornam-se cada vez mais desprezadas nas sociedades. Pondero, contudo, que quando falo da importância dos ritos, não os atribuo, necessariamente, às dinâmicas religiosas, embora a religião seja um caminho válido para quem, com ela, se identifica. Amplio a compreensão dos rituais como dinâmicas simbólicas que conferem ao indivíduo um estado de contemplação que lhe provoque uma percepção ampliada de Si; cerimônias simbólicas que movimentam conteúdos conscientes e inconscientes num encontro transcendente que possibilita o contato com o sagrado. Ritualísticas onde o profano é exaltado sem a presença do sagrado, podem levar a arranjos de fanatismo, obsessões, apegos e dependências. Também faz parte da dimensão profana, os prazeres e gozos estimulados pelos cinco sentidos básicos do corpo humano, que despertam uma sensação de êxtase e têm seu valor na caminhada e descoberta de cada pessoa. Por isto tantas condenações de ordem moral religiosa, como se o profano fosse algo errado e proibido. Porém, compreendo que o olhar simbólico permite reconhecer o sagrado como a camada profunda e oculta do profano. A relação entre sagrado e profano é inevitável, pois compreendo que na dimensão humana, o caminho que leva ao sagrado percorre, indispensavelmente, os vales profanos! Até a próxima, Karina Lopes Cabral

MENINOS SILENCIADOS : O ABUSO DE MENINOS NA INFÂNCIA E ADOLESCÊNCIA Quando falamos de abuso, nossa mente automaticamente nos leva às imagens envolvendo mulheres e meninas. Sabemos o motivo óbvio para esta associação, mas hoje compartilho a reflexão sobre a dor de milhares de meninos e adolescentes que também sofrem abusos físicos, emocionais, sexuais e psicológicos que acontecem dentro do próprio ambiente familiar, como tipicamente demonstram as estatísticas do abuso infantil. Meninos que são violentados e silenciados por diversos motivos. A cultura do machismo impõe a ideia de que 'homem não chora', que 'homem é macho', que homem que é tocado por outro homem é 'viado' e tantos outros absurdos que acompanhamos nesta sociedade. Como consequência, meninos violentados sentem-se envergonhados, confusos, culpados, desenvolvendo valores distorcidos em relação ao corpo, autoimagem e postura; criam armaduras para protegerem-se da própria intimidade. Quando adultos, têm grande dificuldade em reconhecer e expressar tamanha dor! Muitos, inconscientemente, vão buscando reforços para a defesa do abuso vivido, através de escolhas rígidas; assumem posturas militaristas e por falta de elaboração da dor que carregam, não raro, reproduzem a violência através do que conhecemos como a 'síndrome do pequeno poder' - que não é difícil de identificar nos cargos de destaque, nos diferentes contextos sociais que vivemos. Quando estes adultos conseguem buscar ajuda psicológica/ terapêutica e assumem que sofreram abuso sexual na infância e adolescência, a denúncia recorrente incide sobre a figura do pai, padrasto, primos, tios, irmãos mais velhos e vizinhos. Como bem é sabido, a maior parte da violência sexual ocorre por vínculos próximos, o que reforça a confusão emocional e psicológica da criança em desenvolvimento. A maioria desses abusos não deixa marcas visíveis no corpo, mas a consequência psíquica é de um aprisionamento que requer muita coragem para enfrentar e assumir situação tão dolorosa. A escuta para estes homens envolve muito tato e sensibilidade, pois estão armados e atravessados de tantas formas que, permitirem receber acolhimento é muito difícil! Na prática clínica é comum escutar destes homens que é a primeira vez que assumem em voz alta o que sofreram; alguns têm dificuldade de compreender que a situação vivida configura abuso, portanto, violência. Situação que, infelizmente, domina a maneira pela qual nossa sociedade é regida. Meninos silenciados e distantes desta compreensão, somatizam a dor através de insônia, baixo autoestima, ansiedade, estados depressivos, dificuldade em estabelecer vínculos de confiança, sentimentos de inadequação, postura autodestrutiva e muita raiva atuando de maneira sombria - o que justifica, em alguns aspectos, a busca de muitos homens pelo Poder, status e ostentação, como forma de compensação. Além disso, também é comum escutarmos relatos sobre compulsão, uso de drogas lícitas e ilícitas, vícios em pornografia etc. Falar sobre o abuso sofrido por meninos é buscar romper um silenciamento que muitos homens vivem ao longo do desenvolvimento. Um silêncio que mascara muita dor, revolta, gera muita agressividade e apaga a sensibilidade tão necessária para todo ser humano. Cada homem que ousa quebrar o pacto machista é agente transformador, de extrema necessidade, na nossa sociedade. Até a próxima! Karina Lopes Cabral

A ROTULAÇÃO DA MULHER SOLTEIRA O que representa ser uma mulher adulta e solteira em nossa sociedade? Em geral, significa carregar alguns estigmas que envolvem julgamentos morais, preconceitos, cobranças e desvalor. Apesar de hoje a mulher ter conquistado maior autonomia - com destaque para a financeira - quando ela passa dos 30 anos e não casou ou é divorciada, ainda é vista como alguém 'frustrada', 'fracassada' ou ' faltante' em algum aspecto. Infelizmente, ainda prevalece a estrutura patriarcal que reforça a ideia de que o valor da mulher na sociedade está atrelado aos papéis de esposa e de mãe. Este atravessamento cultural impõe na menina, desde que ela é gestada, a idealização de tornar-se uma 'mulher de família'. Considero este arranjo uma brutal violência contra a individualidade humana! O estereótipo de gênero viola todo o direito do ser humano se descobrir a partir de Si e não do que é padrão desta sociedade. No caso de nós, mulheres, o sofrimento vem pela invalidação da nossa potência, se escolhemos uma vida sem casamento ou sem crianças. Há uma pressão muito grande, vivida direta ou indiretamente, para que a mulher esteja numa relação heteronormativa e monogâmica. Romper com este padrão, escolher permanecer solteira, viver a potência da própria sexualidade, ter liberdade de escolha com o próprio corpo é ser alvo de questionamentos, julgamentos, desvalorização e ridicularização do que deveria ser, apenas, algo natural e espontâneo. Não raro, a mulher solteira é associada à promiscuidade ou à falência emocional, pelo fato de não querer estabelecer uma relação de casamento. Difícil ter que viver isso em pleno ano de 2025 e constatar que esta mentalidade pouco mudou desde a era medieval, onde as mulheres eram queimadas na fogueira por semelhantes motivos. Quanto atraso moral nesta sociedade! O julgamento aparece, também, para responsabilizar a mulher pela sua solteirice, afinal, 'ela é exigente demais', 'ela é difícil demais', 'ela quer se bancar sozinha o tempo inteiro' e 'desse jeito não vai casar nunca'. Por que é tão difícil aceitar que a mulher pode escolher o que lhe faz bem, independentemente, do que diz o padrão? Porque se consultarmos a História, no período da Idade Moderna, entenderemos que o casamento se consolidou como contrato social e econômico de puro interesse patriarcal. Ou seja, neste sentido, nós mulheres somos objetificada há séculos! E para quantos outros arranjos esta objetificação se estende? Esta construção histórica foi calando a voz feminina e as mulheres foram sendo moldadas por distorções normativas e afastadas de sua natureza criativa, instintiva e liberta. Ser solteira é ainda ser olhada como uma anomalia social. E as mulheres submetidas ao patriarcado, que não reconhecem o aprisionamento que vivem, costumam olhar para a mulher solteira com certo ar de piedade, como se a mulher solteira fosse alguém triste. Me pergunto se, de certa forma, alguns desses olhares não refletem a tristeza vivida por estas mulheres em seus arranjos maritais. Em casamentos criativos, bem articulados e desconstruídos, não é comum observar este tipo de projeção. Apesar das consideráveis conquistas dos movimentos feministas, o que se observa é que o amor romântico ainda é o objetivo final que permeia a ideia de satisfação de vida, da mulher adulta. Considero importante esta temática como forma de desconstrução do modelo rígido das relações amorosas. O fato da mulher estar solteira, não implica fracasso ou anulação de sua vida amorosa. Porém, o que pode ser reconhecido como uma dificuldade para a mulher hétero solteira é o encontro de parceiros que tenham mentalidade desconstruída em relação ao patriarcado. Esta desconstrução, felizmente, já começou, mas sabemos como os avanços são lentos neste quesito. Reconheço que, o estigma da mulher solteira só agrava, quando ampliamos este debate para as questões de idade, raça, classe e orientação sexual. Por isso, toda fala ainda é ínfima diante da jornada até a validação da escolha feminina, seja ela qual for! Seguimos! Até a próxima, Karina Lopes Cabral

EXPRESSÃO E SOMATIZAÇÃO A palavra 'EXPRESSÃO' vem do latim 'expressio' - que vem do verbo 'exprimere', que significa 'exprimir', 'colocar para fora', 'representar', 'enunciar claramente'. Assim, pode-se compreender 'expressão' como algo que é manifestado, externado, representado. Ao expressar, a pessoa traz à tona o que carrega dentro de si. A expressão se manifesta através de palavras, gestos, imagens, arte, etc. Na Psicologia Analítica, o expressar é compreendido como manifestação simbólica do inconsciente. Jung trouxe esta rica ampliação de que toda expressão tem sua origem nesta fonte maior, que busca comunicação constante com cada Psique. Mais do que algo distante, o inconsciente é, na verdade, uma potência imensurável de atuação psíquica e, em geral, a psique humana apreende os conteúdos do inconsciente através de imagens e símbolos. Quando a pessoa se expressa criativamente e verbaliza seus conteúdos internos, seus aspectos profundos vêm à tona e sua intimidade se revela, incluindo seus complexos e imagens arquetípicas. Este é o fluxo natural da expressão humana. Mas, também é da natureza humana o ser relacional e, relações incluem complexidades e afetos que, muitas vezes, alteram o fluxo da natureza expressiva de cada pessoa. E considero que, a partir daí, começam as somatizações. A somatização, pode ser compreendida, em linhas gerais, como a expressão simbólica do corpo mostrando que, por conflitos psíquicos, algo não está a favor de sua natureza; ele revela esta inadequação através de sintomas e doenças. No senso comum, alguns sintomas e doenças são rapidamente relacionados às questões emocionais, mas a negação para a vida simbólica ainda impera. O fato de perceber o aspecto simbólico da doença, não anula a importância do tratamento clínico / ambulatorial. No entanto, ainda é tão assustador para o ser humano entrar em contato com a própria alma, que o corpo como expressão da Psique não é valorizado. O resultado é este arranjo raso que favorece o superfaturamento das empresas farmacêuticas e o crescimento destes estabelecimentos em cada quarteirão das nossas cidades. Corpo e psique são aspectos da nossa Totalidade! "Para onde vão nossos silêncios quando deixamos de dizer o que sentimos?" Como bem apresenta a psicologia profunda, sentimentos não expressos sinaliza um bloqueio perigoso do fluxo natural da energia psíquica. Jung demonstrou que as emoções não verbalizadas, deslocam-se para o inconsciente e ganham força e autonomia, pela falta de elaboração consciente destes conteúdos. Conteúdos que, em algum momento, irão se manifestar somaticamente, através de pesadelos, compulsões, crises de ansiedade, projeções etc. Além disso, os aspectos que a persona nega, reprime ou condena moralmente sobre a própria personalidade - geralmente sentimentos de raiva, tristeza, frustração e desejo - se tornam conteúdos sombrios. Uma sombra que não deixa de existir, pelo contrário: ela se guarda e aguarda a oportunidade de manifestação que, neste contexto, se revela como destrutiva e sabotadora. As expressões bloqueadas não permitem o fluxo criativo da libido, o que desencadeia apatia, sintomas depressivos, desmotivação e a sensação de vazio, de que "algo está faltando", porque a energia psíquica, fonte de vitalidade, não está circulando através de emoções construtivas; falta à pessoa, integração de seus conteúdos. E, como bem apresentou Jung, aquilo que é negado pela consciência do Eu, o inconsciente trará de volta quantas vezes forem necessárias, até este conteúdo ser integrado e permitir que o fluxo natural daquela pessoa, retome seu caminho criativo de desenvolvimento! Até a próxima! Karina Lopes Cabral

ARTE E INDIVIDUAÇÃO Em geral, pode-se compreender a individuação como uma jornada percorrida pela pessoa em busca de tornar-se ela mesma. Como Jung ricamente apresentou ao longo de seu trabalho, o processo do individuar-se vai acontecendo conforme há integração dos conteúdos psíquicos, como o consciente, inconsciente, sombra, imagens arquetípicas etc. O trabalho de Jung torna-se referência para a psicologia profunda quando ele apresenta a ideia do inconsciente como uma dimensão que transcende o inconsciente pessoal, proposto por Freud; ao indicar o insconsciente coletivo, Jung revelou que este se manifesta na psique através de imagens compostas de conteúdos arquetípicos - que podem ser entendidos como 'formas universais' de imagens, padrões ou símbolos, herdados como possibilidades psíquicas da humanidade. São conteúdos que se apresentam através de sonhos, imaginações ativas, mitologias, religiões e, também, na arte! A arte expressa, com muita riqueza e diversidade, os processos internos de cada artista que reverberam na psique coletiva e, através da admiração, interesse, identificação (consciente ou inconsciente) estes conteúdos ganham contorno e propagação coletiva. Em geral, as criações artísticas surgem do inconsciente e se manifestam através da música, da pintura, da dança, do poema, do filme, da encenação, do design, das palavras, da fotografia, da escultura, do desenho etc. A expressão artística é carregada de infinitas possibilidades e a arte é manifestação valiosa do caminho da individuação, tanto para o artista - que em sua composição está em trabalho direto com a fonte inconsciente e abundante dos símbolos, possibilitando, consequentemente, o trânsito direto com seus próprios conteúdos e suas possíveis compreensões e integrações - quanto para a pessoa que se envolve com a arte através de experiências diretas, como espectadora. Viver a arte, independentemente se está no papel de artista ou de observação, compõe uma ritualística de transformação, pois experencia-se afetos que mobilizam partes não controladas pela racionalidade. A arte desarma defesas, uma vez que é mais sentida do que racionalizada. Passamos por rituais de amadurecimento e integração psíquica, a cada experiência. Experenciar a arte é como uma alquimia porque ela traz esta potência de renovação e transformação dos elementos íntimos. A vida sem arte não tem movimento! A arte é ponte direta da Alma que atua nas emoções e provoca as imagens internas que reverberam em todo o corpo, tirando-o da inércia, seja emocional ou fisiológica. Arte gera vitalidade! Ela mobiliza forças internas e rompe o automatismo ao qual nos submetemos em nossas rotinas. Jung sempre destacou a importância das imagens como alimento da Psique. Sim, a arte nutre e revitaliza a alma; a arte irriga a terra, traz fertilidade! Quem vive a arte, incorpora e discrimina melhor o ritmo vital da própria existência. Identifico-me com a ideia de Nietzsche de que a arte tem o poder de justificar nossa existência, mesmo diante do sofrimento e do caos. Para ele, a arte é uma das expressões mais elevadas da vida, e eu concordo. Apesar de toda dor e tragédias que se vive, a arte traz o respiro, o sentido e a beleza compensatória. Em 'A Gaia Ciência', Nietzsche traz ótimas reflexões sobre a arte e artistas, como p. ex., no §107 do Livro II, onde ele diz: "Nossa derradeira gratidão para com a arte. - Se não tivéssemos aprovado as artes e inventado esta espécie de culto do que não é verdadeiro, a percepção da inverdade e mendacidade geral, que agora nos é dada pela ciência - da ilusão e do erro como condições da existência cognoscente e sensível - seria intolerável para nós." Enfim, considero que toda forma de arte é instrumento fundamental de expressão da intimidade humana e concluo com uma das frases mais clássicas de Nietzsche sobre o tema: "Nós temos a arte para não morrer da verdade." Feliz de quem encontra, na arte, sua fonte nutritiva! Ate a próxima, Karina Lopes Cabral

PÁSCOA: ALGUNS SIMBOLISMOS Após a Sexta-feira Santa e o Sábado de Aleluia, chega o domingo de Páscoa, considerado pela fé cristã, o dia da ressurreição de Cristo. No entanto, os símbolos presentes na Páscoa, como os ovos e o coelho ou a lebre, remetem às tradições mais antigas de culturas consideradas pagãs. Na mitologia germânica há uma lenda bem popular que envolve a deusa Ostara (ou Eostre) e estes símbolos pascais. Numa versão conhecida do mito, durante o inverno Ostara encontrou uma ave ferida e para salvá-la, transformou-a numa lebre. Recuperada, a ave, agora lebre, botava ovos coloridos durante o festival da primavera para presentear a deusa. Ostara é considerada a deusa da fertilidade, do amor e do renascimento. Também é a deusa representante das festividades do equinócio, quando o Sol volta a brilhar com a chegada da primavera. Nestas celebrações, ovos eram decorados e oferecidos à deusa, por sua fertilidade. A representação simbólica de renascimento, fertilidade e prosperidade se faz presente em tantas outras culturas, mesmo que não sendo nomeada como Páscoa. Além do festival dedicado à Ostara, essas celebrações são encontradas na cultura celta - no festival Beltane; no festival de Osíris, celebrado no Antigo Egito; no mito de Ishtar / Inana; no Nowruz - o ano novo persa, com raízes no zoroatrismo; na Páscoa judaica - o Pessach; no festival Holi, do Induísmo e na cultura Wicca, onde é realizado o Sabbat. Toda esta riqueza cultural compartilha comemorações que envolvem, além dos ovos, coelhos e lebres, as flores, sementes, cânticos e danças como forma de agradecimento às renovações de ciclos que a natureza oferta. Acredita-se que, conforme os povos germânicos e celtas foram se convertendo ao cristianismo, alguns elementos destas tradições pagãs foram se incorporando, os sincretismos foram acontecendo, até resultar a Páscoa que hoje conhecemos. Além do que já foi apresentado, a Páscoa também tem a representação da renovação da esperança e honra aos antepassados. Mas, em geral, como celebramos a Páscoa nos dias atuais em nossa sociedade? Parece-me que a conexão com as ritualísticas foram perdidas; sofrem de um sufocamento capitalista, onde a rasidão, o imediatismo e o consumo regem as normas. A Páscoa limitou-se a um feriado familiar que envolve alto consumo e baixa espiritualidade. O aspecto Sagrado dos ritos, parecem ter sido substituído pela banalização da convivência e da obrigatoriedade em cumprir protocolos dogmáticos e capitalistas. Me questiono: quais seriam as vias de recuperação deste simbolismo, em sua dimensão sagrada? Existe espaço na sociedade para que isto aconteça? Não tenho respostas prontas, mas acredito na potência dos símbolos e no processo de individuação. Creio que cada pessoa que busca seu resgate à Totalidade e crucifica a dominância do Ego em busca de transcendência e integração psíquica, viabiliza transformações não só individuais, mas coletivas, uma vez que desenvolve pensamento crítico e capacidade colaborativa diante da Supraconsciência que a rege. Acredito que este é um bom, embora longo, caminho que possibilita melhores arranjos. Até a próxima! Karina Lopes Cabral

PAIXÃO DE CRISTO: SIMBOLISMOS E REFLEXÕES A Paixão de Cristo, celebrada na Sexta-feira Santa é um dos eventos mais significativos do Cristianismo; é considerada Santa como destaque para o aspecto Sagrado desta passagem. Até hoje, cristãos em toda parte do mundo reencenam, em procissões e via Sacra, os últimos passos de Jesus, antes de sua crucifixão. E qual a possibilidade de olhar para este Sagrado, independentemente da religião ou ateísmo de cada pessoa? Como olhar, de forma não literal, a morte de Jesus - o Cristo, como salvação da humanidade? Será mesmo este o papel de Jesus na história? O de Salvador? Considero que Jung teve uma expressiva contribuição neste aspecto, quando traduziu de maneira simbólica, a crucifixão de Jesus. Minha compreensão sobre as reflexões de Jung neste tema vem na perspectiva de que a crucifixão é uma representação da necessidade do Sacrifício, que naturalmente surge no processo de individuação, como processo essencial ao desenvolvimento psíquico. A redenção, neste sentido, está além da visão teológica. Não reconheço na imagem de Cristo aquele que julga os seres humanos por seus pecados; pelo contrário: Jesus foi aquele que dividiu sua atenção, afeto e ensinamentos com os mais desprezados e julgados pelos grupos religiosos da época -destacando os fariseus e saduceus. Diferentemente da hipocrisia pregada por estes religiosos, Jesus, com sua postura Crística, semeava através de suas parábolas e sagrada presença, grãos de profundo autoconhecimento. Jung estabelece esta relação com a imagem de Jesus - o Cristo, como manifestação arquetípica do Self - compreendida como a totalidade psíquica. Assim, apresenta-se: Jesus, o ser humano, o encarnado, o que viveu dentro de seus limites físicos, com seus sofrimentos e desafios naturais de dúvidas, perseguições, apaixonamentos, questionamentos, etc. E, Cristo, o ser espiritual, que transcende a matéria, a expressão direta do Divino que atua em todo ser humano, mas que só é percebido, quando cada pessoa, em sua individualidade, busca a redenção de Si, sacrificando-se na 'carne' para descobrir-se 'eterno'. Uma metáfora bem ilustrativa de que a vida não se limita à Consciência do Eu: há uma Consciência Maior que rege cada experiência humana. Ler as parábolas de Jesus, por este viés, traz a possibilidade de compreender a proposta de autoconhecimento e transcendência que ele propõe. Claro que a maior parte do material transcrito pelos apóstolos e por aqueles que conviveram intimamente com Jesus não foi incluída no Novo Testamento, pelos mesmos motivos que acompanhamos em nossos dias atuais: questões de interesses políticos e disputa de poder, envolvendo grande manipulação das massas. No Novo Testamento, apenas os Evangelhos de Mateus, Marcos, Lucas e João foram reconhecidos pela Igreja. Mas, nos evangelhos apócrifos é possível ter acesso às verdades de Jesus que revelam uma relação nada dogmática, sisuda ou engessada; esses evangelhos revelam Jesus em seu aspecto mais esotérico; os textos gnósticos descobertos em 1945 trouxeram novas possibilidades de compreensão de quem foi Jesus, numa visão ampliada de sua vida, suas práticas, seus conhecimentos e ensinamentos. Leituras interessantes são encontradas nos textos apócrifos de Tiago, Tomé, Judas, Maria Madalena, Filipe, entre outros. Esses textos trazem uma visão bem diferente do que autoriza o cânone bíblico, que não reconhece a 'autoria divina' nestes escritos. Um assunto profundo e extenso, mas, neste momento, retorno à imagem da crucifixão de Jesus: toda pessoa disposta à transformação, a encontrar a própria Verdade, a conhecer-se para além dos limites do Ego, será colocada na cruz, em algum momento da sua jornada de individuação. A Cruz como símbolo da integração dos opostos, da quaternidade, da totalidade psíquica, ilustra que ao ser sacrificado nela, Jesus apresenta a morte do Ego para que o Self possa 'surgir". E, concluindo, não deixo de refletir que se estivéssemos lidando com religiosos que verdadeiramente se envolvem com o Sagrado, se dispõe ao sacrifício para a descoberta do Divino em si e fazem da religião um caminho de individuação, a história de Jesus e o impacto de Cristo na humanidade, provavelmente, seria bem diferente! Até a próxima! Karina Lopes Cabral

CIRANDA: SIMBOLISMOS E REPRESENTAÇÕES Ciranda, em geral, representa uma dança popular, com forte expressão cultural no nordeste brasileiro; uma dança que envolve um número indeterminado de pessoas que de mãos dadas, em movimento de roda, entoam músicas, cânticos e de maneira descontraída entregam-se a um momento de comunhão: uma convergência inclusiva que agrega inúmeras possibilidades! A ciranda representa pluralidade e compartilha símbolos de coletividade, união, integração, entre outros: Como uma dança típica nordestina, ela é representante da resistência do povo que mais sofre com as desigualdades sociais e que não abre mão de suas lutas populares. A cultura da ciranda permanece viva, principalmente no litoral nordestino e tem como sua maior representante a honrada Lia de Itamaracá, uma lenda viva da nossa cultura, considerada a "Rainha da Ciranda". Nesta perspectiva, a crianda não deixa de ser, também, um ato político expresso artística e socialmente. Uma representação da voz coletiva, não hierarquizada, que traz em seus cânticos temáticas sobre o dia a dia, esperança, lutas, saudades, etc. Destaco um trecho da ciranda de Lia: "Minha ciranda não é minha só Ela é de todos nós, ela é de todos nós A melodia principal quem guia É a primeira voz, é a primeira voz Pra se dançar ciranda Juntamos mão com mão Formando uma roda Cantando uma canção Olha eu vi uma preta cirandeira Brincando com ganza na mão Brincando ciranda animada No meio de uma multidão Menina eu parei, fiquei olhando A preta pegou a improvisar Eu perguntei quem é esta nega' Sou Lia de Itamaracá A ciranda vai, vai A ciranda vem, vem A ciranda so presta na praia Pra gente brincar mais um bem..." Aqui, a ciranda mostra que ela tem sua expressão de resistência poética, sua importância enquanto identidade de um povo. A ciranda também ganha destaques na escrita de cordel, nos poetas populares e outros mais conhecidos, como Manuel Bandeira, Heitor Villa-Lobos, Chico Buarque; mas é na escrita marginal que a ciranda desempenha seu papel de identidade e raiz de um povo. Sua representação cultural é considerada um patrimônio, um bem imaterial. Sua raiz histórica é composta pelo sincretismo das culturas africanas, indígenas e europeias, com destaque para os movimentos circulares presentes nas ritualísticas e danças africanas e indígenas. Esta representação de raízes ancestrais revela que a ciranda é expressão do povo, em dinâmicas que não envolvem hierarquia, soberania, status ou dominância. Fazer parte de uma ciranda é estar entregue à informalidade, aos afetos e à permissão de alteridade, que afeta a pessoa em todos seus aspectos: físico, mental, emocional e espiritual. Sim, a ciranda também atinge a dimensão espiritual, uma vez que movimenta uma energia coletiva ligada à ancestralidade que mobiliza aspectos numinosos de encontro com o Sagrado. Seu movimento circular é uma representação viva das mandalas que identificamos como expressão do Self, por exemplo. Um símbolo da Totalidade, do ciclo natural de vida-morte-renascimento, do que não tem um começo nem um fim, do conceito de "Todos Somos Um" apresentado de diferentes formas, em todas as culturas. O símbolo circular é a representação do eterno e a ciranda tem ressonância com esta imagem. Nas ritualísticas presentes em diferentes culturas, a expressão do movimento circular está sempre presente: é uma condição natural de todos os movimentos da natureza que reverbera do macrocosmo para o microcosmo. Assim como os mantras e rosários, a ciranda também carrega em suas repetições aparentemente simples a representação meditativa que traz a possibilidade de transcendência egoica. Por isto, também, carrega seu simbolismo espiritual e contemplativo. Quando o nome 'Ciranda' foi sugerido através de um sonho para o projeto da 'Ciranda Analítica ' , ele prontamente foi aceito. Como todo movimento circular, agrego a perspectiva espiralada, onde tudo começa num determinado ponto no círculo e após uma volta, retorna-se ao ponto de origem, mas agora numa ampliação maior, em relação ao início. Reconheço na Ciranda Analítica esta proposta: uma ciranda que vai se compondo através de seu próprio movimento, ampliando naturalmente sua potência. Até a próxima! Karina Lopes Cabral

REFLEXÕES SOBRE NARCISISMO Quando reflito sobre o narcisismo, compreendo a pessoa narcisista como aquela que se encontra em estado de defesa extrema contra feridas profundas que vieram de experiências de rejeição, abandono, falta de amor, medo e muita insegurança. Narcisistas são crianças traumatizadas que foram desenvolvendo armaduras de sobrevivência e enrijecendo o Ego de tal maneira, que não coube outro fluxo de energia psíquica que não este de 'autoalimentação'. Consequentemente, esta inflação egoica criou um senso exacerbado de poder, grandiosidade, onipotência que, na verdade, representa a distância desta pessoa com sua realidade objetiva. Tudo fica muito distorcido, pois a pessoa narcisista busca sentido na validação externa, nos espelhos alheios que necessita para nutrir sua poderosa autoimagem. Uma imagem, no entanto, que não a aproxima nem de si, nem do outro. É uma alimentação contínua de defesas que não permitem aprofundamentos de vínculos, pois a pessoa narcisista geralmente é impenetrável, intolerante, pouco empática, autossuficiente e aparentemente altruísta: adora fazer tudo para os outros - sendo esta uma forma de compensação para sua fragilidade não olhada e uma das garantias de aprovação externa que mantém sua imagem idealizada. Sua persona é tão convincente que as relações estabelecidas parecem genuinamente amorosas. A pessoa narcisista não estabelece uma relação com o Self (Si Mesmo) e por isso é extremamente dependente da relação com seus espelhos - como no mito de Eco e Narciso. O processo de individuação apresentado por Jung propõe, justamente, a integração da Psique em sua totalidade e parte fundamental deste processo é o reconhecimento e integração de conteúdos sombrios - algo inconcebível para o narcisista. Para proteger-se de suas sombras, o narcisista projeta suas falhas, dores, fragilidades em seus vínculos; por isso são pessoas controladoras, manipuladoras, exploradoras, mas extremamente sedutoras. Seduzem no poder, na vitimização, na imagem poderosa, grandiosa de um falso Self, e exalam um falso processo de individuação. Na relação narcisista prevalece a idealização - tanto por parte da pessoa narcisista, que se identifica com conteúdos inconscientes de grandeza sem conseguir desinflar o Ego, quanto pela parte 'Eco' da relação, que só ecoa a 'grandeza' que vem do outro e não reconhece e não se apropria de sua identidade. O sintoma de Eco é a idealização deste Narciso como o belo, poderoso e perfeito! Mas ambos escondem, nas respectivas sombras, uma fragilidade e insegurança de quem não assume a real identidade. Por isso, compreendo o espelho como um símbolo fundamental deste mito! Qual é o verdadeiro reflexo de Si? O arquétipo do Self, sua numinosidade e seu papel fundamental de autorregulador da Psique é fonte de muito receio para pessoa de caráter narcisista mas é aí que está sua 'salvação'. No processo analítico o trabalho com o indivíduo narcisista é buscar o resgate à trilha arquetipica, simbólica, que ficou perdida lá atrás, quando esta criança foi mutilada emocionalmente, desprovida de reflexos afetivos/construtivos parentais. Crianças de pais ou mães que apresentam traços narcisistas sentem um vazio assustador na alma. Como este desenvolvimento é inconsciente, desde cedo assumem a responsabilidade de compensar as feridas narcísicas das figuras parentais, desenvolvendo um ego fragilizado, que depende desta relação para sentir que existem. Essa é a representação de Eco! Na fase adulta, a pessoa estende esta necessidade aos seus vínculos amorosos ou afetivo sexuais. O trabalho analítico com essa pessoa é a busca por trazer para si, aquilo que ela admira e que lhe falta: contorno de Ego! São os extremos que se complementam! Todo Narciso precisa de sua Eco e vice-versa. São relações intensas e extremas em muitos aspectos e que, em geral, são permeadas de muito abuso. A popularização da temática narcisista, por mais que apresente suas distorções e inadequações diagnósticas, tem seu valor na perspectiva de naturalizar as pessoas a reconhecerem e falarem mais abertamente sobre abusos. Até a próxima! Karina Lopes Cabral

PARTO E SACRIFÍCIO: UMA VISÃO SIMBÓLICA A palavra parto vem do latim 'partus' que é derivada da palavra 'parere' que significa 'dar à luz'. A palavra parir vem do latim 'parĕre' que significa 'produzir' , 'criar', 'gerar'. O imaginário coletivo associa o parto, o ato de parir, exclusivamente, à dinâmica da mulher grávida que traz à vida uma criança. Mas será esta a única maneira de se viver um parto? Na perspectiva fisiológica e literal, sim! Porém, reduzir a experiência humana às questões fisiológicas é negar a vivência simbólica e sua expressão psíquica. A prática clínica me trouxe essa reflexão, juntamente às experiências subjetivas. Além disso, a etimologia também é grande aliada das minhas reflexões, pois conhecer a origem das palavras traz maior ampliação de seu significado que, com o tempo e aplicação coletiva, vai se reduzindo à interpretações rasas, superficiais e limitadas. Pensar o parto, a experiência do parir numa perspectiva simbólica é compreender a possibilidade de se dar à luz, gerar, criar, produzir para além de uma gestação uterina. Quantas processos gestacionais e partos já acompanhei na prática clínica? Inúmeros! Processos densos, que somatizam no corpo através de sintomas semelhantes à gravidez fisiológica: desregulação menstrual, enjoos, sonolência, aumento de peso, tonturas, sensibilidade, alteração de pressão, inchaço, desejos específicos etc. Compreendo que o processo de individuação abrange gestações, partos, lutos, numa constante dinâmica de vida-morte-renascimento: nascemos e morremos, em diferentes contextos e em vários momentos da nossa jornada. Momentos estes que, assim como acontece com o parto fisiológico, passam por etapas, que identifico como contração, dilatação, nascimento e contemplação. Após um período de elaboração profunda, conteúdos estruturais emergem à psique consciente e atitudes concretas precisam ser, naturalmente, tomadas. Um exemplo clássico vem com as relações parentais: inevitavelmente, em algum momento do processo, a pessoa terá que rever seus vínculos infantis com as figuras parentais internalizadas e fazer um enfrentamento concreto com essas figuras, deixando de ser apenas a filha(o) para se tornar adulta com autonomia, capaz de fazer escolhas próprias na vida. Sem dúvida, um dos partos mais difíceis e significativos na jornada de individuação: o reconhecimento da necessidade de sacrificar-se para que haja transformações, enquanto indivíduo. Nos termos da psicologia analítica, o parto está ligado ao sacrifício dos aspectos mais imaturos da psique, que foram elaborados através dos conflitos entre os desejos pessoais/autônomos versus forças arquetípicas /coletivas, que devoram - quando não enfrentadas - e perpetuam as condições simbióticas, inconscientes (como ocorre durante a gestação), sem atuação discriminada do indivíduo. Como é sabido, toda gestação, tem prazo de conclusão, senão, a morte é garantida, tanto para quem gera, quanto para quem é gerado. A Natureza é expressão sábia de que os ciclos, obrigatoriamente, se renovam. O que foi gestado receberá o movimento natural de contração e vira à luz, no tempo de maturação de cada Ser, através de uma expulsão necessária para que a vida aconteça. Enquanto processo fisiológico, isto é inevitável! Enquanto processo psíquico, a situação não é tão pragmática, assim. A pessoa nasce, mas isso não garante que ela, de fato, nasceu enquanto indivíduo. Há necessidade de um 'renascimento psíquico', que compreendo como o parto simbólico que acabo de descrever. Não é jornada fácil, nem agradável de se parir, assim como, o parto fisiológico também não é sinônimo de prazer e leveza. Mas, assim como as mulheres que optam por ser mãe e se identificam com a maternidade, relatam que o sacrifício vale a pena, pela contemplação posterior, o mesmo vale para o parto simbólico que cada pessoa faz consigo, quando permite seu renascimento enquanto indivíduo. Um parto que possibilita uma vida mais autônoma, um descobrimento da individualidade, um tornar-se capaz às elaborações, aprofundamentos e ampliações da Consciência. Até a próxima! Karina Lopes Cabral

REFLEXÕES SOBRE JUNG E A PSICOLOGIA DO INCONSCIENTE "Acho que não exagero quando digo que as noções da psicologia médica moderna ainda não tiveram a devida acolhida na ciência universitária, embora já se note algumas exceções dignas de registro, o que não ocorria antigamente. Em geral, as ideias novas - exceto as que provocam ondas de excitação geral - requerem pelo menos uma geração para se firmarem. As inovações em psicologia demandam, sem dúvida, mais tempo ainda, já que, sobretudo nessa área, cada um se considera, por assim dizer, autoridade no assunto. " Esta fala de Jung encontra-se no prefácio da 5ª edição do livro 'Psicologia do Inconsciente' (O.C 7/1), datada de abril de 1942. A primeira edição deste volume data de 1916. Neste intervalo de vinte e seis anos, a cada nova edição, Jung acrescentava um prefácio, avaliando o desenvolvimento da Psicologia do Inconsciente que ele foi difundindo. Sua proposta com este trabalho, em suas próprias palavras : "Minha intenção é simplesmente dar alguma orientação sobre as mais recentes interpretações da essência da psicologia do inconsciente". Qual destaque trago para a fala de Jung? Em 1942 ele expressa sobre o não acolhimento acadêmico da psicologia e que inovações nesta área demandam décadas para serem firmadas. Estamos em 2025 e a fala de Jung, de oitenta e três anos atrás, cabe precisamente nos dias atuais. Como ele bem disse, "embora já se note algumas exceções dignas de registro", a Psicologia continua enfrentando suas resistências. Não é pequeno o número de pessoas que ainda invalida a psicologia, seja enquanto ciência ou cuidado básico de saúde mental. E quando se fala de psicologia do inconsciente, que compreendo como psicologia profunda, a resistência é ainda maior, uma vez que sua expressão vem da alma, antes da racionalidade. Não por um acaso, até hoje, Jung é invalidado na Graduação e sua abordagem não é a 'preferida' da área clínica. Ainda assim, as décadas vão trazendo possibilidades de estruturação e a psicologia profunda vai se fazendo presente. Porém, considero válido destacar que Jung, quando fala da psicologia do inconsciente, ressalta a individualidade, antes das transformações em massa. Ou seja, toda mudança externa e coletiva é possível e efetiva quando há um olhar para Si. Desta forma, as ampliações em psicologia profunda vão acontecendo, principalmente, a partir da individualidade. Por isto, Jung insistiu em falar que suas propostas apresentadas à psicologia não visavam a formação de 'junguianos' ; ele não queria que as pessoas fizessem de suas ideias e reflexões, um dogma. Pelo contrário: a psicologia profunda tem como propósito o caminho da individuação e este mostra qual a relação que cada pessoa fará com a Psicologia. Ter a consciência de que Jung é uma grande referência de psicologia profunda, não o transforma no sabedor absoluto, capaz de anular o que possa vir da trajetória subjetiva. Outra expressão importante de Jung, neste sentido, vem quando ele diz ter caminhado até onde pôde com sua psicologia e que o caminho continuaria aberto aos próximos que viriam, dando continuidade às descobertas do inconsciente e sua respectiva atuação na psique individual e coletiva. Assim, aprisionar-se em conceitos e não permitir que a dinâmica se desenvolva a partir da subjetividade é ir contra o que Jung propôs e registrou ao longo de toda sua trajetória, fazendo uma ciência empírica e ao mesmo tempo, um grande diário da própria alma. Parte desta trajetória e mergulho profundo, ganhou publicação em 2009. Se, em 1942, Jung já afirmava que as temáticas novas em psicologia demoram mais de uma década para serem firmadas, ele respeitou este princípio e autorizou que sua obra mais estimada fosse revelada, apenas, cinco décadas após seu falecimento, ocorrido em 1961. Isso porque o Livro Vermelho contém os relatos mais íntimos de seu contato com o Divino, a Supraconsciência e, ali, Jung se apresenta com outra roupagem, não a mais formal, que ele precisou (e escolheu) vestir para buscar espaço e validação nos espaços acadêmicos e institucionais. Será que nos dias de hoje, precisamos manter tamanha rigidez institucional? Acredito que não, mas, ao mesmo tempo entendo que criar articulações saudáveis e fundamentos consistentes na psicologia profunda, demanda entrega, dedicação, além de muita ética e comprometimento para lidar com os assuntos das profundezas. Quem, verdadeiramente, compreende esta demanda e se dispõe a isso? Essa dinâmica não deixa de ter seu aspecto monástico e tudo o que envolve cultivo da alma, apresenta infinitas resistências e. assim, retornamos ao princípio desta conversa que me gerou estas reflexões. Concluo com o pensamento de Jung, apresentado no prefácio deste mesmo livro (O.C 7/1), na 2ª edição: "Mas são poucos os que buscam dentro de si, poucos os que se perguntam se não seriam mais úteis à sociedade humana se cada qual começasse por si, se não seria melhor, em vez de exigir dos outros, pôr à prova primeiro em sua própria pessoa, em seu foro interior, a suspensão da ordem vigente, as leis, as vitórias que apregoam em praça pública. [...] O autoconhecimento de cada indivíduo, a volta do ser humano às suas origens, ao seu próprio ser e à sua verdade individual e social, eis o começo da cura da cegueira que domina o mundo de hoje. Até a próxima! Karina Lopes Cabral

QUARTA-FEIRA DE CINZAS E QUARESMA: UM OLHAR SIMBÓLICO Hoje é quarta feira de Cinzas, data que marca o início da Quaresma - prática realizada pelos cristãos católicos, como representação da abstinência dos prazeres carnais durante os 40 dias que antecedem a Páscoa. Assim, tradicionalmente, primeiro chegam os festejos do Carnaval - a celebração popular que envolve os 'prazeres mundanos', os 'exageros da carne' - julgado como pecado por muitos cristãos e, em seguida, vem a quarta-feira de cinzas, dia que encerra a folia do Carnaval. É nesta data que, culturalmente, a Igreja católica realiza a cerimônia sacramental de imposição das cinzas sobre os fiéis, com o intuito de livrá-los dos pecados cometidos. Historicamente, as cinzas vêm de ramos que foram queimados e abençoados no Domingo de Ramos, guardados do ano anterior. A ritualística do sacramento consiste na imposição feita pelo padre, destas cinzas (misturadas com água benta), em forma de cruz na testa de cada fiel, como símbolo de fidelidade e permanência, deste, no caminho do Cristianismo, reconhecendo sua mortalidade e seus pecados. Para que esta ritualística aconteça, a pessoa deve estar em jejum de carne, assim como acontece na sexta-feira Santa. Outra associação para as cinzas vem como um lembrete da citação contida em Gênesis 3:19, onde Deus diz a Adão "Comerás o pão com o suor de tua face até voltares ao solo. Pois dele foste tirado, porque tu és pó e ao pó voltarás!" A quarta-feira de Cinzas representa a data que abre o período de abstinência, recolhimento, jejum, orações e caridades propostas pela Quaresma. Esta é uma tradição católica que continua introduzida na nossa dinâmica social, controlando nosso calendário, independentemente da religião ou ateísmo da população. E, esta dinâmica cristã pode ser compreendida por um olhar da psicologia profunda. Simbolicamente, o período de Quaresma é um convite à introspecção, à reflexão, a uma travessia desértica, isto é, individual, subjetiva - como feita por Cristo - sobre os processos que podem levar ao sacrifício do que representa uma vida limitada à materialidade/racionalidade para se alcançar o conhecimento das verdades espirituais, apresentadas na simbologia de ressurreição da Páscoa. A dinâmica ocorrida entre o período do Carnaval e Páscoa revela a enantiodromia do funcionamento da Psique, seja ela coletiva ou individual. A psique funciona a partir tensão vivida pela presença dos opostos. Assim toda intensidade experimentada coletivamente no Carnaval, será compensada, naturalmente, no jejum da Quaresma. O olhar literalizado e dogmatizado dos religiosos, acaba punindo, julgando e condenando as experiências e escolhas prazerosas vividas por cada indivíduo; no entanto, a psicologia profunda reverte este olhar moralista, revelando que o funcionamento psíquico, prontamente, buscará compensação para escolhas extremistas e dinâmicas unilaterais (sem atribuição de valores). Desta forma, não há culpa, pecado ou proibição. O que se respeita é o direito que toda pessoa tem de fazer suas escolhas, sem desconsiderar a responsabilidade individual que deverá ser assumida, em consequência delas. Essa dinâmica é uma maneira de ilustrar o processo de individuação apresentado por Jung, que faz ressonância com as propostas das religiões, quando compreendidas em suas essências, fora da interpretação literal e distorcida de muitos homens que as representam. Até a próxima! Karina Lopes Cabral

CARNAVAL E COMPLEXOS CULTURAIS O Carnaval está aí e compartilho um pouco de sua história no Brasil e sua relação com os complexos culturais. O Carnaval chega ao Brasil por volta do séc. XVII através do Entrudo - uma brincadeira trazida da Europa pelos colonizadores; consistia numa farra de jogar água, ovo, farinha, polvilho, graxa, líquidos fedidos, tintas, etc. entre as pessoas. O que começa com os portugueses em espaços fechados e mais abastados, vai ganhando as ruas e o festejo se abre à população, aos mais pobres, sendo esta a maneira como as pessoas se descontraíam, festejavam e liberavam seus impulsos de prazer durante os 3 dias que antecediam a Quaresma - período pré Páscoa, que demandava recolhimento, restrições, orações, punições e caridade. O Entrudo foi muito popular no Brasil e, ao mesmo tempo, muito condenado pela elite da época, que julgava o movimento como grosseiro, selvagem, imoral. Por isso, e sem grandes novidades, começa a ser reprimido pelos poderes elitistas no final do séc. XIX. As elites queriam se divertir, mas bem longe do povo. De que povo estamos falando? Dos negros, pobres e escravizados. O Entrudo se torna crime nos meados do séc. XIX e começa a ser substituído pelas fantasias e máscaras importadas, pela elite, inspiradas no Carnaval de Veneza. Todo esse movimento foi sendo interiorizado pelos populares, as festividades foram se transformando, surgindo, assim, as rodas de samba no Rio de Janeiro e sua grande influência da cultura africana para este ritmo tão característico do nosso país, que ao se popularizar, ganham apoio governamental até chegarem aos desfiles e comemorações atuais. Outros ritmos carnavalescos que representam a cultura afro-brasileira em outros Estados incluem o Maracatu, o Frevo, o Afoxé, entre outros. Assim, falar de Carnaval é considerar, também, a colonização e a postura eurocentrista de como essa festa foi sendo instituída em nossa sociedade. O fato de ser a maior festa brasileira que todo o mundo celebra e admira, não anula a história racista e escravagista que a compõe e se faz presente no inconsciente cultural da sociedade. Nesta sombra coletiva há dores e gritos de reparação histórica por toda violência e opressão vivida pelos povos africanos e povos originários. Considerando a perspectiva da psicologia analítica, destaco uma frase de Jung sobre os complexos: "Os complexos parecem de tal banalidade e, mesmo, de futilidade tão ridícula, que nos causam vergonha, e tudo fazemos para ocultá-lo. Mas, se realmente fossem assim tão fúteis, não poderiam ser ao mesmo tempo tão dolorosos? Doloroso é o que provoca um sofrimento, portanto alguma coisa verdadeiramente desagradável e, por isso mesmo, importante em si mesma, e que não deve ser menosprezada." (C. G. Jung - O.C. 8/2 §207) Como se pode pensar, então, os complexos culturais e o Carnaval? Compreendo que, em linhas gerais, os complexos culturais podem ser entendidos como um compilado emocional de histórias, imagens, comportamentos, emoções e experiências presentes na psique coletiva e que, dentro de um grupo específico, esses complexos são compartilhados entre os indivíduos - compartilhamento este que, de certa forma, colabora para o senso de pertencimento, identidade, afetividade e organização de um coletivo. Nos desfiles do Carnaval, toda imagética se faz presente na expressão potente e denunciativa das letras, músicas, alegorias, coreografias e vibração de um povo renegado que teve - e continua tendo - sua voz silenciada e violentada. Por isso, o Carnaval, apesar da comercialização existente (e tudo o que vem com ela) , continua sendo um espaço que traz visibilidade e valorização da cultura afro-brasileira, com sua religiosidade e potência de ser! A arte também é denúncia! O aprofundamento na mitologia, símbolos, imagens, enredos e histórias apresentadas pelo Carnaval e pela cultura brasileira nele inserido, traz abertura de enxergar um Brasil não colonialista e valorizar a pluralidade, a riqueza, a diversidade que existe em nossa terra, oriundas dos povos divergentes à cultura eurocêntrica e chegar mais perto de reconhecer um contorno digno à nossa identidade. Até a próxima! Karina Lopes Cabral

DIÁLOGOS COM A DOR Porque as pessoas negam tanto suas dores? A temática da dor é ampla e cabe muitas possibilidades de reflexões. Pego um desses fios para fazer uma possível costura: Vivemos numa sociedade prioritariamente materialista, racionalista, onde as dinâmicas egoicas se sobrepõe às da alma. A sociedade de consumo também é uma máquina manipulativa que, ao mesmo tempo que induz acreditar que há soluções para qualquer tipo de dor, ilude com a falsa ideia de que a tristeza não deve fazer parte da composição humana. É negada ao indivíduo a naturalização da condição de dor como algo inexorável da vida. Assim, as dores vão sendo suprimidas da consciência do Eu e se instalam nos lugares sombrios da alma. O poder capitalista faz acreditar que as soluções para as dores da alma estão nas farmácias (distribuídas aos montes, em cada quarteirão das cidades), nas prateleiras dos supermercados, nas lojas dos shoppings, nos excessivos procedimentos estéticos, nos patrimônios acumulados etc. Ou seja, a dor nunca recebe convite para sentar-se à mesa, pois é considerada persona non grata e se torna marginalizada. Todavia, apesar da exclusão egoica, ela continua viva e atuante. Desmontar a defesa egoica e entrar em contato com a dor, não é tarefa fácil e, por isso, não deve ser romantizada! Importante reconhecer que, enquanto condição natural, a dor pode ser elaborada, quando não é negada. Permitir o contato com as próprias dores representa reconhecimento e envolvimento com as emoções e sentimentos que escapam do controle egoico e não são aliviadas em tempo pré determinado. A 'Sra. Dor' leva o indivíduo a lugares que ele negou, ao longo de seu desenvolvimento. Estabelecer diálogo com ela é um processo delicado e sofrido, mas nem por isso, deve ser evitado ou negligenciado. Os enfretamentos diante das dores contribuem para o amadurecimento e um conhecimento maior de Si. Quando o indivíduo não foge de seus sofrimentos emocionais, ela dá um passo importante na escuta do que vem do inconsciente, das camadas mais profundas e tão necessárias ao processo de individuação. A dor não olhada, provavelmente se fará presente em forma de sintomas físicos, pois o Self sendo o arquétipo de autorregulação, atuará de maneira que esta dor seja percebida de alguma forma o que, do ponto de vista sentimental, é triste! O indivíduo poderia se relacionar melhor com seu corpo e sua alma se não negasse seus sofrimentos íntimos. Jung, no livro "A Natureza da Psique" escreve: "A alma humana vive unida ao corpo, numa unidade indissolúvel, por isto só artificialmente é que se pode separar a psicologia dos pressupostos básicos da biologia..." (C. G. Jung - OC. 8/2 §232) Assim, a dor pode ser compreendida como uma potente expressão simbólica, que muitas vezes expressa um grito de socorro inconsciente. Negá-la é uma grande desvantagem! Acolhê-la e buscar compreendê-la traz a possibilidade de integração e transformação do indivíduo e seus conteúdos! Até a próxima! Karina Lopes Cabral

A SOMBRA NA PSICOLOGIA ANALÍTICA Falar sobre Sombra na psicologia analítica é buscar descrever um arquétipo essencial ao desenvolvimento. Em linhas gerais, ela pode ser compreendida como os conteúdos que a Consciência do Eu não discrimina, mas que atuam inconscientemente na dinâmica do indivíduo. Como todo arquétipo, a Sombra não se define por valores morais ou éticos: ela pode ser tanto construtiva, quanto destrutiva. Assim, quando se fala da Sombra, não necessariamente se esboça algo ruim, apenas algo que a Consciência do Eu ainda não reconheceu e não integrou. Justamente, por serem conteúdos inconscientes, a tendência é que o Ego assuma uma defensiva, pois função é, também, manter o arranjo consciente dentro dos moldes estabelecidos, racionalmente, por cada pessoa. Dessa forma, o Ego busca proteger a consciência racional de novos arranjos, se defendendo da Sombra. Porém, sua negação ou repressão não faz com que ela desapareça; ela não perde potência e não deixa de atuar. Inevitavelmente, ela aparecerá em forma de projeções, nos complexos e, como Jung orientou, fará parte do nosso destino. De acordo com Jung, a Sombra é um dos arquétipos que mais perturbam o Eu e complementa: "A sombra constitui um problema de ordem moral que desafia a personalidade do eu como um todo, pois ninguém é capaz de tomar consciência desta realidade sem despender energias morais. Mas nessa tomada de consciência da sombra trata-se de reconhecer os aspectos obscuros da personalidade, tais como existem na realidade. Este ato é a base indispensável para qualquer tipo de autoconhecimento e, por isso, em geral, ele se defronta com considerável resistência ". (OC. 9/2 §14) A análise é um caminho legítimo, mas nada fácil de confrontar a Sombra. Também exige, da postura profissional, muito tato, sensibilidade e manejo clínico para lidar com as resistências e temores que se apresentam. Outro fator, que considero primordial para quem se propõe ser analista, é estar sempre em acompanhamento analítico, olhando, enfrentando, reconhecendo e integrando as próprias sombras. Infelizmente, não é raro escutar relatos de abusos cometidos dentro da prática clínica por 'profissionais' que não reconhecem o compromisso ético e moral da profissão e não se dedicam a olhar a própria Sombra. O resultado são processos desastrosos, envolvendo muitas misturas, projeções, controles e manipulações de todos os tipos. Trabalhar com a psicologia profunda, é tocar a alma humana, como bem ensinou Jung. A quem se dispõe atuar como analista, não cabe negar a própria Sombra. Por isso, uma boa análise e uma boa supervisão são imprescindíveis! E para quem procura o caminho de autoconhecimento com profundidade, o confronto com a Sombra é inevitável e fundamental. Até a próxima! Karina Lopes Cabral

A ESCOLHA DE NÃO SER MÃE Dentro de nosso arranjo sociocultural, a figura da mulher está atrelada, estruturalmente, à maternidade; se uma mulher escolhe não ser mãe, ela, fatalmente, enfrentará julgamentos. A maternidade compulsória vem carregada de posturas arcaicas - com acentuado viés moral religioso - que propagam crenças do tipo: "toda mulher nasceu para ser mãe"; "o único amor verdadeiro é de uma mãe pelo filho" (destaque para o substantivo masculino); "uma mulher só se realiza através da maternidade"; "ser mãe é assumir de Deus o dom da criação", entre tantas outras falas conservadoras. Por isso, considero rica, qualquer forma de expressão construtiva sobre esta temática: é necessária e muito bem vinda! Felizmente, vão-se abrindo espaços e, cada vez mais mulheres, vão sentindo-se confortáveis para dialogar sobre o assunto. O número de mulheres que opta pela não maternidade, vem crescendo, e já existe um termo em inglês que as definem: 'NoMo' - uma abreviação de No Mother. A escolha em não ser mãe vem permeada, entre outros, da não identificação com a maternidade, a falta de rede de apoio, o desgaste e sacrifícios exigidos, o peso da dupla jornada, a prioridade do desenvolvimento profissional ou dedicação a outras atividades. Diante da rígida estrutura patriarcal da sociedade, que valoriza a mulher pelo seu desempenho materno, o escolher não ser mãe, é fazer um enfrentamento e desconstrução do enraizamento profundo desta estrutura; é retirar raízes tão bem fincadas nesses valores, que urgem serem revistos. Por isso, a mulher, por mais decidida que esteja, consciente ou inconscientemente, será afetada de forma desafiadora, pela sua decisão. Não tem como sair ilesa! Este é um bom termômetro da pressão que a mulher vive pelo simples fato de não querer engravidar e criar uma criança! Independentemente se têm mais ou menos estrutura para lidar com o assunto, as mulheres passam por situações que envolvem críticas, cobranças, julgamentos, chantagens emocionais, exclusões e tantas outras formas de abuso emocional, físico e psicológico. São atitudes que ferem, severamente, a individualidade humana. E onde não há respeito, não há amor! A busca é ampliar e incentivar debates e divulgações que ajudem a propagar reflexões sobre a temática, para que o respeito à mulher e sua individualidade conquiste cada vez mais espaço de naturalização das suas escolhas. Até a próxima! Karina Lopes Cabral

RELAÇÕES SUFOCADAS É interessante observar como as dinâmicas conjugais se revelam em ambientes populares, como por exemplo, em restaurantes. Bastam poucos minutos para perceber o número expressivo de mesas onde casais, apesar de sentarem juntos, são atravessados por um silêncio absurdo, que os separa. Olhares que não se cruzam, palavras que não conectam, mãos que não se tocam, braços que não se aproximam e o celular como única testemunha e grande aliado para esta distância consolidar-se. Uma cena corriqueira, naturalizada em nossa sociedade, mas que a mim, é motivo de espanto e reflexão. Me pego questionando: " porque este casal está junto, se tudo parece tão enfadonho?" Há pouco tempo, presenciei um casal de idade mais avançada, que estava sem celular: marido e esposa chegaram, pegaram o cardápio, a mulher conversou simpaticamente com o garçom, pediu o que queria, o marido fez o mesmo e esta foi a única interação vivida. Assim que o garçom saiu, a expressão aberta se apagou e a seriedade se fez presente. Esperaram a comida em profundo silêncio, cada um com um olhar vago, para lados distintos. Suportaram este silêncio com espantosa naturalidade. A comida chegou, cada um ficou envolvido com o próprio prato; assim que terminaram, o homem pediu a conta, pagou e, ele e a mulher, foram embora. À minha percepção, este casal é uma bela ilustração da formação tradicional de casamento, por isso, inferi que, provavelmente, já tinha feito bodas de ouro e fiquei me questionando: "Faz quanto tempo que deixaram de conversar? Há quanto tempo não se olham nos olhos? Será que em algum momento, ainda dão risada de suas histórias? Almoçam fora por rotina ou se fazem um convite?" Este foi um exemplo que me chamou atenção pelo fato de não estarem com o celular como distração, mas, em geral, esta dinâmica se faz presente, independentemente da idade. Caminhando por este viés de percepção, me causa espanto e, ao mesmo tempo, tristeza constatar o que se naturaliza como conjugalidade dentro do patriarcado. No patriarcado, o que importa é ser casado. Mas qual a qualidade deste casamento? Há disposição para aprofundar as relações? Ouso afirmar que não, porque para aprofundar uma relação, ambas as partes precisam de abertura e entrega emocional e o patriarcado não permite que o homem sinta, expresse, viva e transborde suas emoções. Quando fazem, é de maneira grosseira, em seus "clubes do Bolinha", regado a comida e muita bebida, para extravasarem o que precisam 'engolir' no resto do tempo. As mulheres não são ouvidas e quando precisam falar, são taxadas de histéricas, ou verborrágicas. Assim, formam o "grupo das Luluzinhas" para falarem mal de seus maridos, quando não projetam suas frustrações nas crianças que acabam sendo esponja de toda essa limitada dinâmica. Descrevi uma cena clássica dos anos 50, não é mesmo? Estamos em 2025, e quando vejo a distância afetiva dos casais, nos restaurantes, por exemplo, percebo que, apesar da fachada contemporânea, pouco mudou em 75 anos, neste sentido. O patriarcado não estimula o aprofundamento da relações, a descoberta do prazer mútuo, a liberdade do prazer individual, o incentivo à comunicação, à transformação, o respeito à individualidade, a valorização do toque, do afeto, a entrega, o olhar, a expressão livre das emoções, independentemente de gênero! O que o patriarcado estimula às relações é cruel, pois afasta, não une! Em dinâmicas patriarcais, logo, conservadoras, não se pode expressar: homem não pode chorar, se emocionar, mulher não pode gargalhar; homem não pode se sensibilizar, mulher não pode dizer não! Enfim! Mais uma vez, identifico que neste arranjo não há vantagens para as pessoas. Os beneficiários são única e exclusivamente aqueles que detém o Poder. Quanto menor a alegria, quanto menos individualidade, quanto menos prazer, maior a manipulação. Que possamos transgredir esta opressão para valorizarmos, expressarmos e admitirmos nossas escolhas amorosas! Até a próxima! Karina Lopes Cabral

O VALOR DA SOLITUDE Vivemos um período de desconstrução social, onde modificações nos relacionamentos vêm, felizmente, acontecendo. Mesmo com a resistência humana para mudanças estruturais e todo preconceito que nos assola, já é possível observar algumas referências mais positivas nos arranjos de relacionamentos, incluindo o da solitude, o qual darei destaque nesta escrita. Essa é uma temática que vai ganhando espaço, mas ainda está longe de ser naturalizada, por isso, é grande o número de pessoas que não compreende as matizes emocionais distintas entre solidão e solitude. Solitude pode ser compreendida como uma escolha consciente, prazerosa necessária, sem definição de tempo, onde a prioridade da pessoa não é estar com alguém para sentir-se emocionalmente segura para viver a vida. Muito diferente é a solidão: um estado emocional que gera angústia, pelo fato da pessoa, em geral, perceber-se isolada, rejeitada, não pertencente e dependente de companhia externa para sentir-se acompanhada. Também, aqui, cabe a observação de que o adulto que não vive uma relação conjugal, frequentemente, é olhado com estranheza - para não dizer, julgamento! Lembrando que, a ideia de amor romântico surgiu na Europa, por volta do séc.XII, mas é no séc. XIX que ela se consolida como um valor cultural. Os arranjos patriarcais e a idealização do amor romântico, exigiram das pessoas uma entrega total de si para o outro, seja no papel de provedor -em geral, para os homens, e de cuidadora para as mulheres. E quando o valor da autocompanhia foi reconhecido na sociedade? Estamos no século XXI e, apesar dos avanços, não é difícil encontrar quem se surpreenda ou atribua algum valor improdutivo ao encontrar pessoas que vivem bem sua solitude - principalmente nós, mulheres, obviamente! Muito comum os comentários: "vai ao cinema sozinha?" "vai viajar sozinha?" "Você passa o final de semana sozinha?" "Por quê não chama alguém para sair com você?" É nítido o quanto estas pessoas não conseguem identificar a riqueza de viver em companhia própria e não conseguem compreender que uma escolha não anula a outra! É muito possível viver relacionamentos sem anular a solitude! Os casais que respeitam o arranjo da solitude, também se deparam com os julgamentos: "mas você namora e está viajando sozinha(o)?" ou em qualquer encontro familiar, a fatídica pergunta: "cadê fulana? Beltrana não veio por quê?" E como estes, não faltam exemplos que denunciem a dificuldade das pessoas se relacionarem a partir da principal companhia: a própria! Desta forma, pensar novos arranjos relacionais é pensar, também, a solitude, pois ela abre espaço e naturaliza a necessidade da relação consigo - imprescindível para a saúde mental e emocional de todo ser humano! Até a próxima! Karina Lopes Cabral

RELACIONAMENTOS E PROJEÇÕES Toda relação humana é baseada em projeções. E o que são elas? A projeção é o processo onde o indivíduo transfere seus conteúdos subjetivos no mundo externo, seja em pessoas ou objetos. Jung fala sobre isto em 'A Natureza da Psique' (O.C. 8/2): "Da mesma forma que nos inclinamos a supor que o mundo é tal como o vemos, com igual ingenuidade supomos que os homens são tais como os figuramos. ... Todos os conteúdos de nosso inconsciente são constantemente projetados em nosso meio ambiente, e só na medida em que reconhecemos certas peculiaridades de nossos objetos como projeções, como imagens, é que conseguimos diferenciá-los dos atributos reais destes objetos". Considerando esta afirmação, como podemos pensar as relações conjugais? Num relacionamento, quando as pessoas não estão conscientes desta dinâmica projetiva, inevitavelmente viverão trocas onde esperam do outro, aquilo que ainda não reconhecem de Si. Enquanto estão na fase do enamoramento, as projeções mais reconhecidas são das qualidades criativas, envolventes, sedutoras, pacíficas, resolutivas, etc. Quando a convivência vai estreitando os vínculos, este arranjo colorido começa esmorecer e as projeções que surgem são, naturalmente, contrapostas. Surgem, então, as dinâmicas de cobranças, insatisfações, julgamentos, comparações, intolerâncias, etc. Este é um arranjo clássico, que toda sociedade reconhece, assim como as dores, sofrimentos, traições - principalmente auto traição que surgem. E por que, este é um arranjo tão difícil de ser mudado? Porque, justamente, a mudança só acontece quando o indivíduo é capaz de reconhecer suas dinâmicas projetivas e assumir as responsabilidades de Si. Na conjugalidade, esta prática apresenta significativa complexidade, pois, em geral, falta autoconhecimento de ambas as partes. É delicado o processo da pessoa em análise, perceber a dificuldade em se relacionar com alguém que não está numa construção de autoconhecimento, pois as dinâmicas ficam visivelmente discrepantes. Difícil conviver com quem não reconhece, não elabora e não recolhe as próprias projeções. Ao mesmo tempo, para quem se dispõe a olhar pra Si, este movimento de alteridade é riquíssimo. Dentro da prática clínica, acompanhamos diversas experiências: pessoas que reconhecem a necessidade de separação pois, uma vez recolhida e reconhecida as projeções, não há mais compatibilidade na convivência; parcerias onde a necessidade de análise é reconhecida pela pessoa que, até então, não via necessidade de olhar-se, mas não quer romper com o relacionamento e começa, também, um processo individual; pessoas que não bancam um processo de análise individual, mas aceitam a terapia de casal, e por aí vai. Independentemente do arranjo, importante reconhecer que cada parceria vive suas relações a partir do que cada pessoa carrega dentro de si, que as projeções são naturais e inevitáveis, mas o que se faz (ou se deixa de fazer) com elas é o que define o fluxo das relações, incluindo a relação com a própria intimidade. Até a próxima! Karina Lopes Cabral

AMOR E PODER A abordagem de Jung, em relação à Psiquê humana, parece destacar a importância de compreender e explorar às complexidades da alma. Pensando no amor e refletindo sobre as suas diferentes formas, Jung o percebia como uma energia fundamental para a Psiquê e para o processo de individuação que nos conecta a nós mesmos. São diversas as formas de manifestação do amor: o amor romântico, o paterno, o materno e outros; porém, elas não podem ser somente uma "emoção" e sim uma experiência de transformação individual que transcende e proporciona a integração dos opostos na Psiquê. Pensando na leitura de algumas de suas obras, compreendi que o amor pode ser visto como um processo de cura em análise e na experiência de vida. Não tenho a pretensão de definir o que é o amor e sim de pensar o quanto esse tema da atualidade nos afeta. É importante destacar que onde o poder chega, o amor vai embora; se eu vejo a relação amorosa como uma propriedade, e tento possuí-la ou moldá-la, eu não me relaciono com seus opostos e possibilidades de amor. "Onde predomina o amor, não há vontade de poder. E onde há a predominância do poder não há amor". Carl jung Sheila Rosana de Carvalho Pereira Beijos e até!

JUNG: O ARQUEÓLOGO DA ALMA Uma observação recorrente dos que se dispõe a ler as obras de Jung é que a leitura é difícil, complexa, às vezes cansativa, que ele dá muitas voltas em seus pensamentos etc. Sim, de fato o material de Jung é denso, compreendendo esta palavra em seu sentido figurado: Jung apresenta uma riqueza de conteúdo, inevitável, pela sua natural profundidade emocional e intelectual. Essa densidade é facilmente percebida quando entramos em contato com suas obras. Ao longo dos dezoito volumes que compõe suas Obras Completas (num total de 35 livros), a riqueza do material apresentado envolve a trajetória profissional e pessoal de Jung e o amadurecimento da psicologia analítica, que foi sendo revelada conforme Jung se dedicava à escavação da própria alma. Em geral, um trabalho arqueológico se fundamenta, basicamente, em três etapas: detecção, coleta e análise dos vestígios encontrados. Para que o trabalho aconteça, há um enorme cuidado com o reconhecimento do sítio arqueológico, suas condições climáticas e a avaliação para distinguir os tipos de instrumentos e escavações que serão utilizados. O intuito da arqueologia é descobrir, revelar e conhecer a cultura das diversas sociedades e civilizações que já passaram por aqui, tiveram seu auge em alguma época da História, pereceram e foram soterradas, mas mantiveram-se vivas enquanto legado histórico e influência para as civilizações contemporâneas. Este é o ciclo natural de tudo o que é vivo e manifestado neste mundo: vida – morte – renascimento. Desta forma, a História também tem sua alma, que pode ser revelada através dos artefatos e todos tipo de evidência material que vai sendo encontrada. Assim como o arqueólogo que, com toda minúcia, se debruça num solo e começa sua escavação com pá, balde, peneira e pincéis, sem saber o que vai encontrar, se vai encontrar ou quanto tempo a escavação durará, Jung também se debruçou em seu sítio arqueológico, buscando apoio e referência em todo arcabouço cultural das civilizações. A arqueologia é um trabalho árduo, que demanda entrega e muita paciência! Além disto, considero a curiosidade uma grande propulsora deste trabalho, pois este desejo intenso de ver, conhecer, experimentar e descobrir o que movimentou o mundo em outras épocas e o impacto deste passado em nosso presente, é essencial para a não desistência de um processo escavatório. Jung, com toda sua curiosidade, priorizou o trabalho empírico e, com todo cuidado e paciência de um arqueólogo, foi detalhando suas experiências, observações, reflexões e vivências, formulando assim, sua costura teórica. Como bom arqueólogo, foi a campo, processou suas descobertas - inclusive em laboratórios, nas primeiras experiências psiquiátricas em Burgölzli - estudou e publicou seus resultados. Uma leitura sensível às obras de Jung me traz a capacidade de transpor a concretude de suas palavras e, através delas, ser brindada por imagens e reflexões que tanto auxiliam minha jornada de individuação. Assim como na arqueologia, onde vestígios concretos dão abertura para uma linda costura no tecido da História, fica fácil trazer Jung para perto e senti-lo em sua entrega, curiosidade, silêncio e respeito pelo que está sendo descoberto. Numa concepção subjetiva, considero que Jung, através de suas escavações, descobriu e revelou a psicologia analítica ao mundo. Além de grande teórico, artista, filósofo e poeta, tenho Jung como um grande arqueólogo da alma. Até a próxima, Karina Lopes Cabral

TRAVESSIA O iniciado aqui, visto em uma jornada de alma e em sua travessia ritualística, vislumbra a potência do seu movimento com o Sagrado. O girar da energia o abraça em seus enfrentamentos e cumpre a função de envolvê-lo. Essa energia do Sagrado, que pulsa nesse processo com o objetivo de desenvolver-se, flui criativamente. Jung com sua teoria profunda, nos provoca a iniciar esse caminho para a individuação, como um rito na descoberta do nosso próprio mito! Essa travessia (Ego/ Self) para o iniciado, pode representar o encontro com sua potência na vida. Penso que escolher por atravessar seja um convite, ao qual cada um faz a jornada na medida do seu momento de encontro com suas profundezas. Sheila Rosana de Carvalho Pereira

A MORALIDADE DO CORPO Refletir sobre o contexto de moralidade é assunto infinito, a começar com os dados de seu surgimento na conduta humana. Em linhas gerais, aceita-se que a moral passa a existir a partir do momento que o humano começa a conviver em grupos. Mas como ela se desenvolve, é um tema muito controverso e de muitas perspectivas, como as dos filósofos Kant – que a entende a partir da razão, ou Hume – que considera a moral fundamentada pelo sentimento; ou ainda, Hegel - que divide o conceito de moral em objetiva e subjetiva. É claro que a moral também está atrelada à religião, enrijecendo-a de maneira absurda; e a moral se funde, ainda, ao conceito de ética. No entanto, a proposta desta breve reflexão é partir do pressuposto que, enquanto seres sociais, estamos submetidos à moral e, em linhas gerais, a moral pode ser compreendida como o conjunto de princípios, costumes e valores de boa convivência entre as pessoas de uma sociedade. Mas, afinal, onde nossos corpos entram nessa história? Bem, nosso corpo é o instrumento material que traz concretude para nossa psique, correto? Uma psique sem corpo, não se manifesta! Uma alma, que em essência é livre, mas está manifestada num corpo submetido aos comportamentos sociais, logo, aprisionados às normas e condutas morais que regem uma sociedade. Mesmo numa reunião amistosa, familiar, passamos um filtro em nossas palavras e atitudes, pois nem tudo que vem de nosso espírito livre, será bem recebido. Desde a primeira infância, nossos corpos vão recebendo “ajustes” desta moral e vão sendo moldados em favor da “boa conduta”. Os exemplos são muitos: “senta direito”, "isso é 'caca'", “cruza as pernas”, “mastiga direito”, “não pisa descalço no chão frio”, “não precisa chorar”, “menino não dança assim”, “menina não brinca desse jeito”, “tira a mão daí”, “isso é feio”, “não pode falar palavrão”, põe o chinelo senão vai ficar doente”; “não pisa aí”, "tira a mão do 'pipi'", “não senta aí, senão vai sujar a roupa”, “não pula, é perigoso”, “não corre, você vai cair”, “não deita no chão”, etc. Trago aqui situações cotidianas que vão se acumulando ao longo do desenvolvimento de um Ser que vai ficando barrado no encontro com a própria individualidade, afinal, todas as experiências sensórias são desestimuladas e limitadas ao que foi autorizado por condutas extremamente nocivas. Surge, assim, um corpo que não se descobre a partir de sua Totalidade, pois não experencia vontades, não é respeitada sua curiosidade natural e não vivencia os estímulos próprios que estão a serviço da alma. Muito da experiência corporal também passa pelo campo da sexualidade e agregando a moral religiosa neste enredo, a situação é ainda mais drástica, pois tudo fica proibido, controlado, pecaminoso. A dificuldade humana em se entregar verdadeiramente à própria sexualidade, é imensa! O encontro sexual também se limita aos ‘protocolos’ de conduta, com pouco espaço para permissões, soltura e descobertas individuais. Além disso, o julgamento contra a liberdade sexual é enfático para robotizar os corpos. Como um corpo que não reconhece os próprios prazeres, pode desfrutar uma entrega? Quem determina o que é prazer? Prazer só pode ser generalizado, para ser autorizado? Fato é que o prazer se experencia pelo corpo e quando este está limitado, muito dele se limita também, e as somatizações serão inevitáveis: as doenças chegarão e os excessos e compulsões, também! Um corpo não autorizado aos próprios prazeres, é um corpo desconectado da própria alma e não há vida criativa que se manifeste, assim! Até a próxima! Karina Lopes Cabral

MULHERES Como mulher, sinto que às vezes vivencio uma fantasia. Parece que os tempos atuais ditam suas regras e seus valores, tentando nos seduzir com palpites e consolos. Como devemos nos vestir, comer, pensar, como se estivéssemos finalizadas em seus moldes ideais, além de termos que nos adaptar ao mundo atual, que por sua vez, muda rapidamente, a ponto de não darmos conta dessas projeções. Onde estará a frustração desses que nos apontam às suas atuais soluções para vida? Penso que a adaptação ao inesperado, além dos conflitos, precisa de tempo e afeto, e que as referidas exigências, rótulos e modelos partem de todo lugar e a todo momento. Não atender a essas exigências, é umas das difíceis tarefas de relacionamento com esse mundo atual; diante desses fatos nos tornamos inseguras e por vezes solitárias, pensando no enfrentamento que muitas de nós fazemos em voz baixa e temerosa, e correndo o risco de nos sucumbirmos. Existe um conto em que uma senhora andava pelo deserto catando ossos e juntando-os em uma caverna, para que em noite de lua cheia ela ritualizasse um canto para esses ossos e eles voltassem à vida! Nós mulheres, catamos ossos na tentativa de nos reinventar a todo tempo e no nosso tempo. Estaremos alertas! Sheila Rosana de Carvalho Pereira. Beijos e até

CURIOSIDADE E A DISTÂNCIA NECESSÁRIA NO VÍNCULO ANALÍTICO Uma questão trabalhada dentro da prática da psicologia clínica é a da aproximação entre analista/psicoterapeuta e paciente. Até que ponto essa relação se estreita e o vínculo se aprofunda? Rei esta é uma questão relativa, uma vez que cada abordagem e cada psicoterapeuta assume uma postura. Trago aqui uma perspectiva de quem atua na abordagem da psicologia analítica - considerada uma psicologia profunda, logo, compreendo que não tem como atuar com profundidade, sem aprofundar vínculos. Sendo a psicologia analítica uma abordagem que naturalmente fala sobre a alma, é sensato compreender o espaço analítico como um encontro de Almas que apresentam suas necessidades e exigências de maneira consciente e inconsciente; psiques que se manifestam nas transferências e contratransferências vividas neste encontro. Essa complexa dinâmica ocorre dentro do espaço analítico, que é considerado um espaço sagrado, pois nele é depositado a segurança, confiabilidade, ética, proteção e sigilo de tudo o que é expresso pela Alma que ele adentra. Como a proposta é de um encontro, obviamente, a psique que se manifesta não é única e, antes de paciente chegar ao espaço analítico, nossa contratransferência já está ativada. Vive experiências clínicas onde, mesmo antes da primeira entrevista, a dinâmica de determinadas pessoas me foi apresentada através de sonhos vividos em noites anteriores e o primeiro contato com essas pessoas só confirmavam o que o campo onírico já havia anunciado. Desta forma, naturalmente somos envolvidos numa dinâmica íntima como as pessoas que atendemos. Mas há uma diferença muito grande no que representa a intimidade no vínculo analítico, da curiosidade que este vínculo, inevitavelmente, desperta. Curiosidade esta, que ocorre de ambas as partes! Nosso ego é curioso, pois age na tentativa de controlar e atingir seus objetivos; daí uma grande armadilha na prática clínica: a escuta clínica não vem da racionalidade do ego e sim da escuta da consciência. James Hillman, em seu livro “Uma Busca Interior em Psicologia e Religião”, estabelece a diferença entre ego e consciência: “mas é possível separar o ego da consciência... é possível desenvolver uma consciência receptiva através do ouvido, assim como uma consciência ativa pode se desenvolver por meio das mãos... recebemos o outro como se fosse música, ouvindo o ritmo e a cadência de sua história, suas repetições temáticas e desarmonias. Nessa atitude, nos transformamos em mitólogos da psique, ou seja, em estudiosos das narrativas da alma, pois mitologia, originalmente, significa “narrações de histórias”. No mesmo livro, Hillman destaca que a escuta profunda está além da curiosidade egóica que atua nas psiques, incluindo as de psicoterapeutas, que por muitas vezes se atém e sentem necessidade de traduzir pacientes em testes rótulos e dinâmicas que determinam traços de personalidade, análises corporais e “todos os métodos atuais visando conhecer as pessoas e que empregam a curiosidade através de análises psicodinâmica horas e testes projetivos; ... porém, será que o conhecimento obtido às custas de dividir se ainda mais observado e observador, cindindo o indivíduo interiormente, ajudaria a cuidar ou a curar sua alma ?” Assim, a escuta analítica não se atém ao controle de possíveis diagnósticos e não se apega em saber detalhes que saciam apenas a curiosidade egóica: numa escuta profunda há considerável envolvimento entre as pessoas comprometidas com o processo. Nesse enredo existe, também, a curiosidade por parte dos pacientes que naturalmente querem saber mais sobre as particularidades de quem os atende e acompanha seus processos, o que é natural afinal somos seres humanos! Cada psique se manifesta à sua maneira e essa curiosidade será projetada, de alguma forma, em algum momento, no processo analítico. Não há doutrinação do que é certo ou errado em se fazer, mas destaco a importância em compreender que a intimidade necessária e construída ao longo do processo analítico não implica envolver conteúdos de curiosidade do ego; a distância da nossa vida pessoal, enquanto analistas/psicoterapeutas, é uma necessidade é um respeito pela pessoa que busca num processo profundo o conhecimento de si. Quando possibilitamos essa distância, respeitamos o espaço do vazio, do mistério, do silêncio, que a Alma necessita para escutar se de maneira profunda; o sagrado do espaço analítico é mantido, com a proposta de que cada Alma se encontre com o que é seu, em primeiro lugar. Se o processo vai para um caminho que encurtar esta distância e as psiques se envolvem em suas curiosidades e se projetam, ruidosamente, em nível egóico, não se cria uma relação construtiva, um encontro de almas; a relação fica rasa e superficial. Que esta reflexão não seja levada ao extremo: a questão não é assumir uma postura sisuda, defensiva e fugitiva diante de quem acompanhamos e com quem nos envolvemos, mas sim, ter uma escuta analítica do que cabe ou não ser revelado em cada processo; se alguma informação íntima contribui para o processo de individuação da pessoa, ótimo, está tudo bem; mas trazer proximidade apenas a favor do ego, não colabora para o desenvolvimento não uma humana. Até a próxima! Karina Lopes Cabral

RITOS DE PASSAGEM Como os ritos de passagem são importantes e o quanto estamos distantes deles na nossa rotina . Os ritos nos remetem à experiências vivenciadas do sagrado em nós e essa experiência, invocada pelo self, nos trazem compreensão das vozes aflitas da alma! Penso hoje no rito da formatura: quantos de nós já o vivenciamos? E será que o percebemos? Penso nos jovens que saem do ensino médio afoitos por descobertas da nova profissão! Quantos nessa busca estarão prontos? Seria cruel exigirmos tanta responsabilidade em uma profissão que exercerão para a vida toda? Somos exigentes e inocentes quando pensamos nessa profissão como um ideal! Seria interessante dar aos jovens o benefício da dúvida? E atentem-se a isso: a dúvida sempre presente na vida deles. E o que parece ser natural, muitas vezes, no compromisso de serem adultos, acabam por nem perceberem seus conflitos. Olha só o quanto a vivência do rito é importante . Sheila Rosana de Carvalho Pereira.

ADOECEMOS Adoecer pode significar transformação, reflexão, desespero, angústia ... Mas eu, que não acredito no acaso, sempre reflito: para que está servindo esse adoecimento? As nossas defesas egóicas tendem a disfarçar nossas angústias, como uma maneira de não enfrentarmos uma transformação profunda na alma. Essa transformação que bate à nossa porta, e que, se estivermos atentos e menos defendidos de nós mesmos, poderá nos trazer a luz que faltava no fundo do poço. O corpo e a alma caminham juntos, mas nem sempre no mesmo ritmo, e quando isso acontece, podemos adoecer dos dois! Gosto da maneira que Jung olha para psique e a vê criativa e transformadora... e essa foi sua grande sacada! O inconsciente é riquíssimo, mas seus recados não se vêem trazidos na nossa linguagem. Precisamos fazer um esforço e um sacrifício pelo desejo de nos encontrarmos e tentar traduzi-los. Isso é um caminho possível! Nossos sonhos, fantasias, resistências e desejos nos ajudam nesse processo. Acho que para olharmos o adoecimento com profundidade, talvez seja necessária uma pausa nessa tendência em acreditar no sagrado fora do nós; como se a ajuda viesse de fora. Jung nos propõe esse encontro com o sagrado em nós e essa conexão com a alma. Ela acontece a todo tempo ! Às vezes uma flor, uma música ou até uma lembrança nos remetem a esse encontro transformador. Será que o tempo que levamos para perceber esse movimento, fala do tempo que deixamos de viver para sobreviver? Será que adoecer significa um reencontro com nossas defesas e uma possibilidade de transformação? Sheila Rosana de Carvalho Pereira

INFÂNCIAS DETERMINANTES O corpo físico é um instrumento concreto que carrega as experiências vividas ao longo do nosso desenvolvimento. Este veículo suporta uma bagagem significativa que vem da infância e, esta, norteia muitas das nossas escolhas ao longo da vida. Escolhas muitas vezes sorrateiras, que ludibria o ego e o faz acreditar que está no comando e que as opções são puramente racionais. Esta racionalidade, que faz parte de uma estrutura patriarcal, é endossada nas dinâmicas familiares submetidas a este sistema; pouco da delicadeza e cuidado - que seriam ideais para uma pessoa se desenvolver em segurança - é estruturada. Em geral, e a prática clínica é um ótimo termômetro para esta referência, indivíduos que manifestam a potência transgressora da alma, desde a primeira infância buscam suas rotas de fuga para que seu desenvolvimento aconteça: as dores e traumas vão sendo lançados em um grande arcabouço e quem ganha destaque é a potência construtiva que vem da racionalidade. São indivíduos de muita inteligência e criatividade, aprisionados num alto grau de rendimento e produtividade – os famosos “tratorzinhos” e “robozinhos” – mas que trazem proporcional incapacidade para os afetos. São pessoas aprisionadas em corpos rígidos, endurecidos pela falta de colo ao longo do desenvolvimento infantil. Dinâmicas em que Eros não se faz presente. Sabemos que os maus tratos, independentemente de sua dimensão – física, mental, emocional – vem de um efeito dominó transgeracional e a proposta não é apontar culpados, mas sim, destacar a importância do Ser em reconhecer a bagagem pesada de dor, faltas e traumas que o impedem de caminhar de maneira mais leve e fazer escolhas em rotas de maior fluidez e liberdade. Uma vez adulto, assumir a responsabilidade pela vida afetiva é de grande conflito, pois houve fuga deste doloroso encontro - pela falta de respaldo emocional das figuras parentais, que proporcionasse um desenvolvimento afetivo, minimamente funcional. Nossas experiências infantis determinam a qualidade de vida adulta que teremos. Promover um encontro sincero com nossos afetos e chamar nossa criança para participar desta escuta genuína exige coragem, afinal, toda defesa racional, criada com tanto afinco, foi um ato de sobrevivência para que essa criança disfarçasse a dor em sua consciência e pudesse desenvolver estruturas de autonomia. A independência financeira é conquistada, mas a emocional, falha com sucesso! O resultado desta dinâmica são pessoas de extrema vulnerabilidade, que vão projetando sua dependência emocional nos vínculos precários que desenvolvem. Adultos que não buscam um olhar profundo para a própria alma, perpetuarão este ciclo geracional tão negativo e não possibilitarão encontros mais sinceros e afetuosos com as crianças, a começar pela própria. Refletir sobre a própria infância e sobre a importância de um olhar cuidadoso com essa etapa primordial da vida é um caminho de construção legítima para rompimentos significativos e necessários, dentro da nossa dinâmica psíquica, com as figuras parentais introjetadas de maneira tão destrutiva. Ressignificar a relação com essas figuras – enquanto representações em nossa intimidade – colabora, e muito, para uma construção positiva com os vínculos que vamos criando ao longo de nossa jornada. Até a próxima! Karina Lopes Cabral

MATERNAGEM E MATERNIDADE Ser mãe, num sentido mais profundo, demanda elaboração do feminino, para não padecer no paraíso das ilusões e idealizações! Há quanto tempo a Terra está negligenciada em sua essência feminina, rogando por um olhar humano acolhedor que lhe traga de volta o respiro, o colorido e a potência de sua devoção? O mundo carece de Amor! A realidade está impregnada de falsos devotos, que cultuam distorcidas belezas e distorcidos valores. Não compreendem a importância do arquétipo da mãe como atuação criativa e fértil na construção de uma maternagem coletiva. O mundo carece de Proteção! Maternagem é diferente de maternidade. Maternidade é biológica ou adotiva e define o estado de ser mãe. Maternagem é a capacidade que toda pessoa, independente de gênero, pode desenvolver para ser uma referência positiva e estabelecer um vínculo seguro com quem necessita de um bom colo para seu desenvolvimento. O mundo carece de Maternagem! Maternar envolve o reconhecimento da polaridade feminina que compõem todo Ser vivo. A humanidade está mal tratada pela ganância e ignorância dos que não reconhecem a importância do feminino em seus aspectos construtivos! Falta elaboração individual de verdadeira nutrição, proteção, conforto e cuidado, que gere abrigo e segurança para quem se aproxima - a começar por Si. Que nesta data simbólica, todas as mães arquetípicas se façam presentes e despertem, acima de tudo, o autoamor! 🙏🏻🌹❤ (Karina Lopes Cabral)

LUTO E SAUDADE No caminho do fim as perguntas são tantas. Fizemos o suficiente, ainda temos tempo para retratações? Acompanhando e vivendo esse sofrimento, me peguei pensando nos acertos de contas se o fim estiver próximo. Muitos amores, apesar de grandiosos com sua humanidade, nos deixam marcas que nem sempre temos tempo para perceber o tamanho desse buraco. Muitas vezes a emoção nos envolve e o sofrimento, dado a falta de tempo para revisitar antigas arestas, nos deixam levar pela impotência do momento. Nossos amores não são Deuses e, justamente por isso, seja doido o reconhecimento da sua humanidade e morte. Acompanhei várias pessoas e suas dores na ressignificação das arestas com seus amores que um dia na imagem de Deuses eram intocáveis. Quando percebemos sua humanização na dor do fim, a saudade do não vivido se torna insuportável. Mas será simples ressignificar a morte? Pensando na morte como um símbolo de transformação não posso desacreditar. O fim nos traz elaborações e reconhecimento de outros em nós e que, na presença do ser ideal, nem poderia ser questionado! Nada disso parece importar; a dor, a falta e a angústia nos dominam, e misturados a perda desse amor, por vezes idealizado, nos vemos diante do desafio de nossa humanidade. Sheila Rosana de Carvalho Pereira Beijo e até

A TERRA É PARA SER TOCADA Jung, em agosto de 1928, escreveu uma carta a Hermann Keyserling - escritor e filósofo alemão - analisando alguns símbolos oníricos que o alemão compartilhava com Jung em suas frequentes trocas de correspondência. Nesta carta, Jung escreve ao colega: “O relacionamento negativo com sua mãe é sempre uma afronta à natureza – é antinatural. E daí vem a alienação com referência à terra, identificação com pai, céu, luz, vento, espírito, logos. Repúdio da terra, do inferior, do escuro, do feminino. Relação negativa com o material, também com crianças. Fuga do sentimental – pessoal.” Ao ler essa interpretação, algumas associações me surgiram. Toda natureza manifestada possui um princípio de gênero onde tudo contém os elementos feminino e masculino e com o ser humano não é diferente. Cada Ser carrega seu par de opostos e o bom entrosamento deles significa, no mínimo, uma certa adequação emocional. Esta sizígia, natural e infinitamente ilustrada (p.ex.: lua/sol – yin/yang – luz/trevas – eternidade/tempo – etc.), nos acompanha, também, na imago parental. Ou seja, carregamos em nós as imagens de pai e mãe e nos relacionamos intimamente com elas, independente do desejo do Eu. Vivendo numa sociedade patriarcal, a polaridade mais destacada e valorizada é a masculina: a racionalidade, a rigidez, o controle, a ação, a certeza, polaridade esta que atua com destaque em todos os gêneros humanos. Também neste arranjo patriarcal, o feminino aparece despotencializado, submisso e sem espaço para se apresentar e a maior parte das pessoas, infelizmente, revela esse machismo estrutural. A relação precária com o princípio feminino fica escancarada e, para muitas pessoas, é difícil reconhecer que esta polaridade faz parte da natureza e da psique humana. Nas primeiras fases de nosso desenvolvimento, pai e mãe são as referências concretas deste par de opostos e a relação que temos com essas figuras (ou com a ausência delas) influencia a maneira pela qual vamos nos relacionando com o feminino/masculino dentro de nós. No arranjo patriarcal, o pai continua sendo a maior representação do masculino e a mãe do feminino. Porém, pai e mãe patriarcais pouco se integram com seu próprio feminino e atuam com a rigidez masculina; apresentam grande dificuldade em flexibilizar sentimentos, posturas, proporcionar sutileza, paciência, compreensão e escuta amorosa para as demandas, incluindo as infantis. Desta forma, a criança vai se desenvolvendo em um ambiente de excessivas regras, controles, sem condição de estruturar uma relação afetiva de boa qualidade com a própria intimidade e com as figuras parentais. Esta é uma maneira de ilustrar a fala de Jung à Keyserling, quando cita a “relação negativa com o material, também com crianças. Fuga do sentimental – pessoal.” Quando Jung traz a antinaturalidade de uma não relação com a mãe, destacando esta disposição como afrontosa, considero importante não literalizar esta fala, afinal, muitas pessoas trazem jornadas de extrema violência, em todos os sentidos, e precisam de distância das figuras parentais para que a vida possa fluir. Porém, a imago parental precisa ser trabalhada e, neste sentido, a distância não ajuda: reconhecer a relação profunda com as figuras de pai e mãe da nossa intimidade é fundamental para nosso desenvolvimento; permanecer afastado delas é de grande prejuízo. Dentro dos elementos da natureza, como bem destacou Jung, a terra é uma rica representação do feminino; é o elemento que recebe, que germina, que gesta; é dela que surgem novas criações; tem profundidade, é silenciosa, acolhe e é fecundada. A pessoa que repudia a terra, apresenta questões relevantes com a própria essência feminina. Em exemplos cotidianos, observamos tal dificuldade em pessoas que não se identificam com plantas e flores e, quando se identificam, não conseguem manter a planta viva, por inúmeros motivos; pessoas que tiram as áreas de terra de suas casas, pois dá “menos trabalho” ou aparece menos bichos; pessoas que até vão a um parque, mas quando convidadas a caminhar descalças pela grama, recusam veementemente, pois podem sujar os pés, serem picadas por algum inseto, ou pisarem em alguma sujeira. Ou seja, numa interpretação simbólica, estas pessoas apresentam uma defesa muito grande ao feminino e, provavelmente, apresentam questões significativas na relação materna. A consequência também se manifesta no corpo, que muitas vezes está dessensibilizado ao prazer e mostra dificuldades ósseas, articulares, principalmente nos joelhos e quadris. Toda rigidez esconde dores profundas da alma! Possibilitar vivências prazerosas para o corpo em experiências concretas de entrega à natureza é de grande riqueza e a terra representa um belo convite! Até a próxima! Karina Lopes Cabral

A IMPORTÂNCIA DA ANÁLISE PARA ANALISTAS Falar sobre a importância da análise na área da psicologia pode parecer um assunto básico e desgastado, afinal é uma premissa de qualquer formação que se preze. No entanto, a proposta desta reflexão é sempre válida, pois na observação da prática clínica é muito comum acompanharmos profissionais que não assumem a postura de responsabilizarem-se com o próprio processo e compreenderem que faz parte do desenvolvimento profissional, o constante processo de autoconhecimento. Desde a formação acadêmica, a psicoterapia é sugerida aos alunos como parte primordial daquele que futuramente lidará com a psique humana e é impossível fazer um bom trabalho sem o conhecimento básico da própria. Aliás, me corrijo: será que existe conhecimento “básico” da psique? Cada abordagem da psicologia poderá apresentar uma resposta, mas dentro da psicologia analítica – uma psicologia profunda – considero difícil. Compreendendo a psique na visão junguiana, onde ela é dinâmica e constituída pela dimensão consciente (eu/ego) e por uma ilimitada dimensão inconsciente, é claro que somos regidos por uma força que, de “básica”, não tem nada. Na prática profissional, nossa psique está atuando - assim como atua em todas as relações que nos propomos - no entanto, a diferença é que na relação profissional assumimos a responsabilidade de acompanharmos o outro em sua jornada de autoconhecimento e temos como dever, cuidarmos da nossa própria jornada, que não é finita e não cruza uma linha de chegada: ela é um contínuo desenvolver da alma. “Mas se o terapeuta não estiver disposto a questionar suas próprias convicções, no interesse do paciente, é lícito pôr em dúvida a firmeza de sua atitude básica.” (Jung, OC. 16/1 § 184) Jung nos traz a reflexão ética de assumirmos uma caminhada conjunta com quem nos procura, com a consciência de que isso é possível desde que estejamos firmes dentro de nosso território e tenhamos os pés firmes em nossos próprios processos individuais. É sabido que o tripé da boa atuação dentro da psicologia está nas experiências e conhecimentos adquiridos em análise, supervisão e conteúdo teórico. No entanto, não é incomum cruzarmos com profissionais que abandonam esse pressuposto e fazem da prática clínica um lugar de soberania intelectual, sem a humildade para o constante conhecimento da alma. É claro que a racionalidade é essencial para o bom andamento da análise, pois é através do ego que as reflexões ganham concretude, porém, ele é larápio quando governa com autoridade. Profissionais da psicologia, psicoterapeutas e analistas que escolhem a abordagem profunda para atuação, devem considerar o conhecimento compartilhado por Jung e sua insistência em relevar a importância do cuidado com a própria alma, sem a arrogância de que isso se constrói sozinho. O método dialético proposto nos atendimentos, também é essencial para nossos próprios processos, para que não haja enrijecimento de ideias e princípios diante de cada pessoa que se apresenta confiando em nós e nos considerando instrumentos de ajuda de elaboração psíquica; cada pessoa que, na visão da psicologia analítica, é respeitada por sua individualidade e quanto mais se aproxima de sua verdade, mais se manifesta em sua Totalidade. Que possamos ter a responsabilidade moral e ética de acompanharmos os que buscam ajuda, sem nos considerarmos as grandes deusas ou deuses do Olimpo. Finalizando com a fala de Jung: “Jamais análise alguma seria capaz de suprimir definitivamente todas as inconsciências. O que temos que aprender nunca se esgota, e jamais deveríamos esquecer que cada caso novo levanta novos problemas, e vai dar oportunidade para que se constelem pressupostos inconscientes que até então não tinham aflorado. Poderíamos dizer, sem grande exagero, que mais ou menos metade de cada tratamento em profundidade consiste no autoexame do médico, porque ele só consegue pôr em ordem no paciente aquilo que está resolvido dentro de si mesmo.” (O. C. 16/1 § 239) Até a próxima! Karina Lopes Cabral

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